28/06/2017

LUIZ ANTÓNIO DE ASSIS BRAZIL

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Sem direito a esquecer

A fim de entender a repressão política, essa doença sazonal de certas democracias, nada melhor do que uma visão “interna”, isto é, um olhar que a vê – e sofre – por dentro das regras do sistema. A melhor forma de realizar esse propósito nem sempre é o calhamaço teórico-crítico. A literatura, quando feita com arte, encarrega-se plenamente da tarefa. Marx dizia que, para entender a França da Restauração dos Bourbons, ele preferia Balzac aos historiadores. No mesmo sentido, um preparado acadêmico pode narrar o que foi a “Jornada de África” de D. Sebastião, mas apenas um escritor pode imaginar e nos dizer os pensamentos do infortunado rei durante a Batalha de Alcácer-Quibir.

Um Perigoso Leitor de Jornais, de Carlos Tomé, há pouco lançado, honra o desígnio para o qual foi escrito: por um lado, reaver a memória que o autor tem de seu avô, um honrado carteiro em Ponta Delgada; por outro, recuperar a repressão política durante o período salazarista. (Aqui no Brasil tivemos uma ditadura feroz, mas até hoje os escritores não querem saber disso – até que surja um Carlos Tomé brasileiro.)

O livro em pauta, assim, apresenta duas vertentes temáticas bem definidas: a primeira narra a prisão de Carlos Ildefonso Tomé, unicamente porque distribuía, como carteiro, um jornal do Partido Comunista, obviamente considerado como subversivo pelo sistema então vigente. Os desdobramentos familiares e emocionais desse ato são constrangedores para a história de qualquer país civilizado. Estão ali os sofrimentos da esposa Maria José e de seus nove filhos, que ficaram, de uma hora para outra, sem os pequenos rendimentos do provedor da família, mas, mais do que isso, perderam a presença do esposo e pai, verdadeiro esteio moral para todos. Viraram-se como puderam, e não faltaram algumas pessoas solidárias que os ajudavam, algumas um pouquinho à claras, como o Doutor Luís Bettencourt; outras, no esperável anonimato. Os tempos eram difíceis. Instaura-se, então, a fome, que estará presente do início ao fim do romance, a fome brutal e sem paradeiro, a fome que esmaga e humilha. As rendas do protagonista não eram apenas os salários fixos, mas também provinham de um pequeno negócio familiar, que era a confecção de soldadinhos de chumbo, tarefa de que participavam todos. Mesmo essa cessou, e a perda das formas de modelar adquire um caráter emblemático no enredo íntimo dessa tragédia pública.

A outra vertente do romance – mas não separada dela, muito ao contrário – pertence à esfera política, à ditadura. Esta se apresenta tentacular e totalizadora, e a ela não é impedido nada: prender sem causa, juntar os detentos em condições deploráveis e transportá-los para sucessivas prisões, sonegar informações dos processos a que respondiam, transformar os carcereiros em seres de humor arbitrário e tóxico, aceitar as delações como coisa normal e, em suma, exercer o sadismo em toda sua dimensão. Senhores do mundo e do universo, esqueciam-se de que todo esse edifício ver-se-ia degradado e, por fim, cairia ao solo. Mas enquanto eram reis, exerciam seu reinado com pavorosa dedicação. Se a história de um homem é também a história de seu país, este romance consegue, de maneira eloquente, recriar o que foi Portugal dos anos 30 do século passado, através de Carlos Ildefonso Tomé, carteiro.

Assim, aquilo que era uma memória pessoal e familiar, ascende, por via literária, a uma denúncia: quem ler Um Perigoso Leitor de Jornais terá inúmeros momentos de autêntico prazer estético pela soberba condução da narrativa, mas, ao mesmo tempo, conhecerá um episódio real, desses que não temos o direito de esquecer, especialmente em tempos de ascensão de ideologias de extrema direita, que podem resultar em amargas recorrências históricas no mundo todo. Estejamos alertas. Este romance nos chama à reflexão e, penso eu, poderia ser lido com proveito em todas as escolas. Os jovens, conhecendo “por dentro” o que foi a ditadura, serão esforçados artífices e apoiantes ferrenhos da democracia, o único sistema político que, passem seus problemas, pode assegurar o bem-estar das pessoas e de uma nação. 

* Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil

IN "AÇORIANO ORIENTAL"
21/06/17

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