15/06/2017

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ONTEM  NO
"OBSERVADOR"

Comandos.
 A história do recruta 
que fugiu do curso fatal

Viu dois colegas morrer sob o calor de Alcochete. Ficou com o corpo em “carne viva”. Não aguentou e desertou do quartel. Chegou a Faro. Acabou “como um preso”, isolado numa caserna da Carregueira.

A noite tinha caído sobre a Carregueira e ajudava à camuflagem. Tiago, aspirante a comando do 127º curso, sabia exatamente como podia fugir do quartel. Eram 22h00 de uma terça-feira, 6 de setembro de 2016. Como tinha feito a sua recruta para a tropa regular no Regimento de Comandos, conhecia as fragilidades do aquartelamento. 
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Saiu da caserna em direção ao portão por onde entravam e saíam as viaturas. Sabia que, poucos metros ao lado, a rede tinha um buraco; foi por lá que saiu, incógnito, sem documentos, sem telemóvel – sem olhar para trás.

Percorreu a pé menos de três quilómetros até à estação de comboios do Cacém. Apanhou um comboio para Sete Rios e, por volta da uma da manhã, entrou num autocarro em direção a Faro. Às cinco da manhã, quando chegou a casa, os pais já tinham recebido uma chamada do comandante da companhia. “O capitão disse ao meu pai que estava surpreendido, não percebia porque é que eu tinha feito aquilo, que eu era um bom militar, um dos melhores do curso”. Mas também avisou: se, até às 18h00 do mesmo dia, o recruta não estivesse na porta de armas do regimento de Comandos, ele seria considerado um desertor. E nesse caso as consequências poderia ser sérias.

Dois dias antes da fuga tinha acontecido tudo aquilo que levou o recruta a cometer a loucura de desertar do Regimento de Comandos. Ao final da manhã daquele trágico 4 de setembro, o termómetro já se aproximava dos 40º no Campo de Tiro de Alcochete, as G3 pareciam fogo nas mãos dos recrutas do 127º curso de Comandos, o pó não tinha tempo para assentar: levanta, deita, rebola, corre, rasteja, volta ao início. Gritos, empurrões, muitas bofetadas. Antes do meio-dia, os primeiros homens começaram a cair, quebrados pela intensidade dos exercícios, esgotados pela sede que lhes secava a boca e lhes paralisava os movimentos. “Já não eram pessoas, era múmias que ali estavam”, conta Tiago ao Observador (nome fictício a pedido do próprio). Na Carregueira, um dia depois, o comandante da companhia haveria de lhes dizer que Hugo Abreu tinha morrido. O recruta, que já não tinha dúvidas, foi então que decidiu: ia desistir ou fugir, escapar à morte. Acabou “como um preso” no quartel dos Comandos, diria mais tarde aos inspetores da Polícia Judiciária Militar no depoimento que prestou no âmbito do processo judicial à morte de dois soldados.


Tiago sonhava fazer parte daquele tropa especial do Exército. “Era o que mais gostava”, confessa ao Observador. Integrou o estágio do curso 125 – umas corridas, algum exercício de tiro, umas noções de topografia. “Nada de especial, era como uma recruta um bocadinho mais exigente”. Mas uma doença inesperada atirou-o para o bloco operatório e para longe do sonho de um dia ter a boina vermelha. Recuperou e, um ano mais tarde, voltou a inscrever-se nos Comandos.
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Eram 21h30 do dia 3 de setembro de 2016. O grupo acordou em sobressalto com o rebentamento de granadas e os tiros secos dentro da caserna. “Toca a acordar, já começou o curso de Comandos”, gritavam os instrutores. Em poucos minutos estavam alinhados na traseira de um camião que seguia da serra da Carregueira para o Campo de Tiro de Alcochete. Quando chegou à margem sul do Tejo, Tiago já tinha perdido a noção do tempo: os relógios tinham sido retirados aos recrutas. Fizeram uma pequena marcha e receberam ordem para montar os bivaques. Deitaram-se.

O primeiro choque da recruta
Não sabe ao certo quanto tempo passou mas, ainda antes de o sol nascer, o som de gritos voltou a arrancá-lo do sono. Os instruendos empurraram uma bolachas com algumas tampas de água do cantil, sob as ordens dos instrutores, e seguiram para o exercício de tiro. “Ai, ai, ai, é tão bom o tirinho de combate”, cantava o grupo em uníssono. Estavam nas primeiras horas da manhã, mas as fardas cinzentas já não se separavam dos corpos.

O instrutor mandou-nos formar um “U” e quem não fizesse o exercício como eles queriam levava umas estaladas e uns empurrões”, conta Tiago. Nova ordem para formar uma meia lua no descampado. Mais chapadas, mais empurrões – “aconteceu com um camarada, aconteceu com outro, aconteceu com várias pessoas”, conta o antigo instruendo. A cena repetiu-se até os superiores estarem satisfeitos com o alinhamento. O comportamento para com o outro grupo, o de instruendos que eram graduados, terá sido o mais violento.

O grupo de Tiago recebeu ordem para tirar a cintura de combate. A arma ficou no chão e os homens começaram a correr atrás do instrutor durante um período que o jovem militar acredita não ter sido inferior a uma hora. Ordem para deitar, rosto colado à terra quente (o chão em Alcochete andaria pelos 35º, segundo dados do Instituto Português do Mar e da Atmosfera que constam do processo). O instrutor afastou-se cerca de 40 metros e mandou os militares rastejar até si. Quando o grupo já estava próximo – a boca seca, o nariz entupido com o pó que envolve os corpos que se arrastam no Campo de Tiro de Alcochete –, o instrutor voltou a afastar-se e deu ordem para que rebolassem mais umas dezenas de metros. Ordem para subir o monte em sprint de combate; ordem para descer a rebolar. “Os cinco primeiros a chegar vão fazer tiro”. Os outros continuam naquela rotina: monte acima, monte abaixo.

O corpo em “carne viva” depois do exercício
Vão de exercício em exercício sem tempos de descanso, sem intervalos para se hidratarem. “Nesse momento, já estávamos todos tontos e mortos de cansaço”, recorda o instruendo ao Observador. A ideia de que não aguentava mais começava a repetir-se com insistência na sua mente.

Foram até à zona do bivaque, beberam algumas tampas do cantil e seguiram para o “carrossel” – um dos mais duros exercícios a que são sujeitos nos quatro dias de duração da Prova Zero com que se inicia o curso de Comandos e durante a qual a maior parte dos militares acaba por desistir. A ideia é levar o corpo ao limite, provocar o “choque”.


De mochila às costas, armas na mão, os instruendos são levados a formar um círculo num terreno aberto, com vários metros de distância entre si. Pousam as mochilas (a “máscara”) e deitam-se na terra, “escondidos” atrás do equipamento. Ao sinal do instrutor, levantam-se num movimento único e correm o mais rápido possível até à posição seguinte, como se estivessem em pleno combate e fossem obrigados a escapar ao fogo inimigo. Estiveram três horas naquilo.
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“Aí, houve muito pessoal que desmaiou, muita gente já tinha os braços em carne viva, cheios de feridas nos cotovelos e no tronco”, recorda Tiago. Quem quebrava era levado para a ambulância, estava “cinco minutos” a recuperar e era reintegrado no “carrossel” para continuar os exercícios. “Achei normal que os meus camaradas caíssem, pela falta de água; o que não achei normal foi que os instrutores se estivessem a cagar de alto para eles”, diz ao Observador. Perante os instruendos caídos, os instrutores gritavam: “Isso não é nada, está a levantar”.

“Foi aí que vi que não valia a pena. Disse que me queria ir embora”, admite. Falou com sargento que acompanhava o grupo (o segundo de quatro grupos, entre os quais o de graduados, de que fazia parte Hugo Abreu). “O sargento Inácio pegou no ora depoente e no instruendo Fortes e disse que viessem atrás dele. Chegou a um monte silvas e ordenou que se deitassem ali, nas silvas, e ficassem a aguardar que acabasse o carrossel”, pode ler-se no processo que decorre no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa (DIAP). Tiago “foi empurrado para cima de um camarada que estava todo torcido com a cabeça de lado”, segundo a descrição que consta no processo.

Eu disse claramente aos instrutores que, se não me deixassem sair, eu ia embora, eu avisei-os”, garante o instruendo. “Eles acharam que eu ia prejudicar o meu corpo só porque eles queriam, mas não”.


Entretanto, os exercícios continuavam. “Vi que a conversa com o sargento não resultou e fui falar com um alferes”, diz Tiago. Era obrigatório percorrer a cadeia hierárquica. Mas a segunda conversa também não teve o resultado esperado: “Disse-me que a minha situação estava a ser resolvida e para voltar para a instrução”. A mesma instrução de que queria desistir ministrada por instrutores que já tinham essa informação.

Às 16h, a situação em Alcochete atingia o ponto crítico. Mais de duas dezenas de militares eram encaminhados para a enfermaria, um forno forrado a lona onde a temperatura era superior àquela que o grupo sentia durante os exercícios. Hugo Abreu já não falava, limitava-se a emitir alguns gemidos; Dylan da Silva também já estava em estado muito grave.

A fuga do “desertor” rumo ao Algarve
A “catástrofe” desenrolava-se na tenda de campanha. Mas os exercícios, garante Tiago, nunca foram interrompidos. “Foi mais soft, fizemos algumas marchas mais pequenas, mandaram-nos limpar as armas no bivaque”. Por volta das 20h00, Hugo Abreu entra em paragem cardiorespiratória. Foram realizadas manobras de reanimação, foi chamado o INEM e, quase duas horas mais tarde, foi declarado o óbito. Dylan Silva acabou por ser transferido para o Hospital Curry Cabral.

O grupo que ainda se mantinha de pé regressou à serra da Carregueira, em Sintra. Foi lá que, horas depois, recebeu a notícia de que o madeirense Hugo Abreu tinha morrido na enfermaria do Campo de Tiro de Alcochete. “A maioria do pessoal começou a chorar, como eu, pouco conhecíamos o Abreu, mas ele era nosso camarada”. Na manhã de segunda-feira, foram encaminhados para a carreira de tiro e o cenário do dia anterior começou a repetir-se – militares a cair por terra, sem forças para continuar, alguns sem conseguir articular um discurso coerente. Quase uma dezena acabou por precisar de receber assistência médica.

“Eu disse claramente aos instrutores que, se não me deixassem sair, eu ia embora, eu avisei-os”, garante o instruendo. “Eles acharam que eu ia prejudicar o meu corpo só porque eles queriam, mas não”.

Tiago viu como Hugo Abreu passou as últimas horas de morrer. Queria ser Comando, era o que mais desejava. Mas não estava disposto a pagar o seu sonho com a morte. “Foi isso que me deu ainda mais vontade de ir embora”.

Então esperou pela noite. Atravessou o quartel. Dirigiu-se para a porta das viaturas. Sabia do buraco na rede e esgueirou-se a caminho de Faro. Era uma fuga. Podia ter-se tornado numa deserção.

Na verdade, o Código de Justiça Militar refere que a situação de deserção só tem efeito caso o militar “se mantenha na situação de ausência ilegítima por 10 dias consecutivos”. Um crime que é punido com “pena de prisão de um a quatro anos”, se for cometido durante mais de 20 dias; caso contrário, a pena reduz-se para o mínimo de um mês e um máximo de três anos” de prisão, em tempo de paz.

Quando falou com os pais, em casa, Tiago não demorou a decidir-se pelo regresso. Entrou no carro, com o pai ao volante, e fez os quase 300 quilómetros de volta a Sintra. “Perante os meus pais, o capitão agiu como se fosse uma pessoa espetacular”. O instruendo voltou a entrar no quartel poucas horas depois de escapar, mas estava decidido a assinar o papel da desistência. “Eu não tinha vontade nenhuma de voltar ali, já sabia que o meu camarada tinha morrido, não tinha vontade nenhuma de continuar”, diz ao Observador.

“Preso” no quartel
O capitão Monteiro assegurou aos pais do jovem que “ia tratar do assunto da desistência do curso”, que ficassem descansados, reproduziria Tiago algumas semanas mais tarde, quando foi ouvido em Loulé por dois inspetores da Polícia Judiciária Militar. “Quando os meus pais foram embora, o capitão mudou de comportamento, chamou-me nomes, disse-me que eu era um merdas, que não valia nada e que, por minha causa, os meus camaradas estiveram sem dormir, o que era mentira”, recorda ao Observador. A segunda parte do pesadelo estava a começar.




“Foi colocado na caserna sete sozinho, não podia falar com ninguém”, lê-se no processo do DIAP. À hora das refeições, era “levado como se fosse um preso”, sempre guardado por um graduado. “No refeitório, era colocado num canto sozinho e virado para a parede”. Esteve assim até ao final da semana.

Fiquei como se tivesse matado alguém”, desabafa ao Observador.
Na sexta-feira, foram reunidos na caserna todos os militares que tinham manifestado vontade de desistir do 127º curso. Mas nada mudou. “Enquanto os outros podiam sair da caserna, eu não podia sair, mandavam-me voltar para trás”. Quando perguntava se podia desempenhar algumas tarefas, como fazia os restantes camaradas, ouvia a mesma resposta: “Tu, não”.

Só na quinta-feira seguinte, mais de uma semana depois de ter voltado a Sintra, recebeu a guia de marcha para regressar ao seu quartel de origem, em Queluz. “Assinei o papel e saí”. E ainda pondera regressar? “Se aquilo mudasse e tivesse outras condições, talvez voltasse”. E acredita que pode mudar? “Não, aquilo não muda”. Um mês depois acabou o seu contrato com o Exército. E então desistiu da vida militar.

* A instituição militar, seja qual for o ramo, é assim. Só quando houver uma pessoa de invulgar humanidade no comando é que haverá mudanças, a banalidade humana tem sido a predominância nas chefias.

** Mais um extraordinário trabalho de investigação de jornalistas do "OBSERVADOR"

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