15/04/2017

VÍTOR BENTO

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Sobre as ameaças jihadistas

Tenho vários amigos muçulmanos e são todos pessoas bondosas por quem tenho muita consideração. Acredito que a maioria dos que professam a religião muçulmana são pessoas pacíficas, bem-intencionadas e interessadas no bem dos outros. E, não sendo religioso, tenho pelo Islão, enquanto religião, o mesmo respeito que tenho pelas demais religiões.

Dito isto, não posso deixar de reconhecer que há um problema com o Islão e que será de uma enorme irresponsabilidade não o reconhecer. Desde logo, porque o Islão não é apenas uma religião, dedicada à salvação das almas e a proporcionar uma compreensão da existência humana e da sua relação com a transcendência. É um compacto totalitário - religioso, jurídico e político - para dirigir todos os aspectos da existência, pessoal e social.

Por outro lado, e depois de um notável florescimento cultural, assente numa fervilhante e criativa agitação intelectual, nos primeiros séculos da sua existência - e a que a cultura "ocidental" muito deve -, o Islão, por volta do século XII, fechou-se, e fechou os seus seguidores, numa literalidade interpretativa da mensagem revelada, solidificada no contexto histórico original, cujo cumprimento é sujeito a uma estrita vigilância e os desvios sujeitos a uma violenta repressão. Sendo a própria apostasia punida com a morte, a adesão acaba por equivaler a uma prisão ideológica e social. Com esse fechamento, o mundo islâmico passou de farol civilizacional, liderante na ciência e na cultura, para um atrofiador atraso cultural que emperra o seu potencial económico e o seu desenvolvimento social e é um permanente foco de instabilidade.

Por outro lado ainda, e embora a organização do Corão não seja cronológica, os eruditos da doutrina reconhecem a prevalência das revelações mais recentes sobre as mais antigas versando um mesmo tema, pelo que, quando em eventual contradição, aquelas prevalecem e abrogam (i.e. desautorizam) as que as precedem. Desta forma, e embora o Livro Santo muçulmano instigue simultaneamente tanto à tolerância como à violência (jihad) para com os descrentes, as segundas instigações são mais recentes, pelo que, em confronto com as primeiras, abrogam-nas, prevalecendo a orientação para a jihad. De que só pode resultar a conquista ou a submissão dos descrentes.

Os movimentos jihadistas invocam, pois, um fundamento religioso para as suas campanhas. E fundam a sua acção na autoridade conferida pelo reconhecimento "teológico" da abrogação e dos seus efeitos. E é pela legitimidade dessa invocação que adquirem uma espécie de ascendente que torna difícil o seu combate ou contestação de dentro do Islão, congregam significativos apoios financeiros, se expandem facilmente e se transformam numa poderosa ameaça.

O potencial de violência decorrente destas considerações é enorme, como se vê em praticamente todos os países islâmicos, onde, entre outras coisas, tem vindo a ser comprimido o espaço das outras religiões e onde, em particular, as religiões cristãs têm sido activamente perseguidas.

É verdade que as principais vítimas desses movimentos são as próprias populações islâmicas, indefesas, que lhes são violentamente subjugadas. Mas também é verdade que o seu alvo estratégico é a eliminação ou subjugação do mundo descrente da sua religião. E que se vê muito pouca oposição aberta por parte do chamado Islão moderado.

Já Samuel Huntington referia no seu O Choque de Civilizações..., publicado há vinte anos, que "a esmagadora maioria dos conflitos [nas descontinuidades civilizacionais]... têm tido lugar ao longo da fronteira que corre através da Eurasia e de África e que separa muçulmanos de não muçulmanos" e que o principal choque de civilizações, "ao nível micro ou local, é entre o Islão e os outros".

Esse potencial violento tem vindo a ser crescentemente trazido à Europa com as migrações e o fechamento destas à inclusão e inserção nas comunidades de acolhimento. Alavancando-se, ademais, numa demografia crescente em contraste com a demografia diminuidora das populações nativas.

Ignorar esta realidade e os seus fundamentos pode parecer politicamente muito correcto. Mas é, no mínimo, incúria política. E é perigoso. Tanto mais que, contrariamente à mitologia revolucionária, as grandes disrupções sociais e políticas são protagonizadas por organizadas vanguardas activistas e não por majoritários movimentos de massas.

É claro que a resolução deste problema só pode ser feita por dentro do Islão, especialmente por aqueles que não se revêem neste caminho, e que tal requer uma efectiva separação entre a religião e a política e uma maior abertura intelectual no seio do próprio Islão.

Não será fácil e é possível que alguns caminhos trilhados no Ocidente, sobretudo no campo dos costumes, possam ser vistos como uma ameaça existencial, reforçando o poder da ortodoxia e dificultando a abertura a que muitos poderiam estar dispostos no mundo islâmico. Mas também é verdade que o primeiro passo para lidar com um problema e tentar resolvê-lo é reconhecer a sua existência.

* Economista

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
 14/04/17

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