Trump e as meninas,
raparigas e mulheres
deixadas para trás
Não se esquece nunca mais na vida, quando se assiste a uma morte
de uma mulher saudável no momento em que está a dar à luz. Uma morte
evitável. Eu, pelo menos não esqueço. É desumano.
A mais recente decisão da Administração Norte-Americana vai
provocar milhares de mortes de mulheres, crianças e meninas em mais de
150 países, onde habita mais de 80% da população mundial. E nós, Estados
membro da ONU, que nos regemos por um mundo mais justo, não podemos
ficar impávidos e serenos.
Mortes maternas e neonatais que seriam evitáveis se o financiamento
acordado de 32,5 milhões de dólares para o Fundo das Nações Unidas para a
População (UNFPA) não tivesse sido cortado pelo Presidente Trump, com
alegações erróneas baseadas nas políticas de planeamento familiar da
China que ainda envolvem o recurso a abortos forçados e a esterilização
involuntária.
Sou Embaixadora de Boa Vontade do UNFPA há 17 anos. Uma missão
voluntária que me tem feito viajar por muitos países em desenvolvimento
onde este organismo da ONU faz um trabalho extraordinário ( e reportei,
inclusivamente para o meu programa de televisão “Príncipes do Nada “)
para evitar que nenhuma mulher perca a vida durante a gravidez ou o
parto, ajudando a impedir gravidezes não desejadas e abortos sem
condições nem segurança com recurso a anticontraceptivos.
Nunca em
nenhuma ocasião assisti, no terreno, a funcionários do UNFPA a
promoverem o aborto. O que vi ao longo destes anos, foi mulheres a ser
apoiadas por técnicos de saúde, recuperando a sua dignidade, através da
assistência a equipamentos de saúde materna, sexual e reprodutiva. Vi o
antes e o depois. Vi as mulheres a morrerem antes da implementação de
programas do UNFPA e vi depois, mulheres a ser evacuadas por
ambulâncias, a chegarem a uma maternidade ( ou centro de saúde)
apetrechados com o financiamento do UNFPA com aparelhos, medicamentos e
kits para grávidas, mães e bebés, ao serviço dos direitos humanos. Vi
gabinetes de aconselhamento a funcionarem com agentes de saúde formados
pelo UNFPA, para jovens e para raparigas, garantindo-lhes o seu
potencial; vi a implementação de programas que promovem a maternidade
segura; que tentam combater a gravidez infantil e adolescente; que lutam
contra os casamentos forçados; que salvam vidas de mulheres que sofrem a
dramática consequência de uma fístula obstétrica; vi parcerias que
apoiam outras associações locais na diminuição da prática nefasta da
mutilação genital feminina; vi projectos que melhoram a qualidade de
vida de pessoas com HIV Sida. Vi, em acção, a promoção dos direitos
humanos de indivíduos e casais para que tomem decisões próprias, livres
de coerção e discriminação.
O que eu vi, que me comoveu, que me faz continuar a trabalhar a
acreditar que, apesar de conhecermos os números da desigualdade, ainda é
possível fazer a diferença, não me deixa calar perante esta noticia
terrível. Sei, com conhecimento de causa, que se trata de uma decisão
ignorante perante a verdadeira realidade do trabalho do UNFPA.
E mais uma vez, são as meninas, raparigas e mulheres que são deixadas
para trás, ignorando os seus direitos, não querendo ver o quanto sofrem
nestes contextos de pobreza extrema. O UNFPA orienta o seu trabalho com
base na certeza de que apoiando uma mulher, se está a apoiar uma
família, uma comunidade, um país. Só no ano de 2016, com o suporte
financeiro dos EUA, o UNFPA salvou a vida a 2,340 mulheres de morrerem
durante a gravidez ou o parto; realizou 1,251 cirurgias a fístulas
obstétricas; preveniu 295,000 abortos inseguros e 947,000 gravidezes
involuntárias.
O Secretário Geral da ONU, António Guterres, já fez saber que
acredita que a decisão dos EUA de suspender o financiamento a programas
de saúde reprodutiva se baseou numa “percepção falsa sobre a natureza e a importância do UNFPA” e que este corte irá ter “efeitos arrasadores na saúde de mulheres e meninas vulneráveis no mundo”.
Depois de nos congratularmos com a indicação de uma portuguesa para
estar à frente do escritório do UNFPA em Genebra, Mónica Ferro,
chega-nos esta “bomba” que nos remete para o universo da mentira e
sobretudo para um horizonte drástico de mortes evitáveis, a que não
vamos poder fazer frente.
A nossa indignação não é suficiente, por isso deixo um apelo aos
Estados membro da ONU, ao SG António Guterres e a todos os doadores,
para que seja possível reforçar o apoio aos programas e ao trabalho do
UNFPA.
Portugal e muitos outros países têm uma dívida de gratidão pelo
passado no que diz respeito à qualidade da nossa saúde materna, sexual e
reprodutiva. Este é o momento de actuar em conformidade. De dizer que
sim, que estamos juntos. Que só podemos estar juntos.
Não se esquece nunca mais na vida, quando se assiste a uma morte de
uma mulher saudável no momento em que está a dar à luz. Uma morte
evitável. Eu, pelo menos não esqueço. É desumano.
Dói muito e do coração
passa para a razão. E acredito que não estou sozinha, mesmo que para
muitos, seja apenas um exercício de imaginação, distante dos olhos, não
pode ser nunca aceitável.
* Embaixadora de Boa Vontade do UNFPA, presidente da Associação Corações com Coroa
IN "OBSERVADOR"
06/04/17
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