26/03/2017

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ESTA SEMANA NA
  "SÁBADO"
"Carta a ti, que abusaste 
sexualmente de mim"

Ângelo Fernandes sofreu abusos sexuais em criança. Só aos 29 anos conseguiu contar a sua história. Actualmente é presidente da primeira associação destinada a homens que foram sexualmente abusados - Quebrar o Silêncio - e decidiu escrever ao homem que marcou a sua vida

Quando tinha 11 anos, Ângelo Fernandes foi vítima de abuso sexual por um amigo da família. Aos 29 anos decidiu contar a sua história a uns amigos próximos. Hoje, com 33, criou a primeira associação destinada a homens que sofreram sexualmente de abusos e escrever ao homem que marcou a sua vida para sempre.

Segundo explicou à SÁBADO, Ângelo pretende usar o seu testemunho para sensibilizar as pessoas para "o abuso sexual masculino". Numa carta com destinatário assumido - o homem que o abusou em criança - a vítima mostra como sofreu e superou a situação.

"Carta a ti, que abusaste sexualmente de mim" é o título de um testemunho na primeira pessoa e de uma mensagem direccionada para o homem que Ângelo acusa de ter destruído a sua infância e parte daquilo que é. "Por tua causa e do que me fizeste, cresci a achar que não tinha qualquer valor. Que não era merecedor do afecto de ninguém. Cresci a achar que mereci teres abusado de mim, de que eu era o culpado. Com as tuas mentiras e palavras engenhosas, semeaste em mim um sentido de culpa sem fim. Cresci com nojo de mim, sentia-me sujo como se fosse eu o culpado das tuas acções, como se fosse eu, uma simples criança, que tivesse abusado sexualmente de ti, um pobre e inocente homem que caiu na trama de um demónio sexual com 11 anos.
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Recorde-se que no início do ano, foi criada a Associação Quebrar o Silêncio, com sede na baixa de Lisboa, uma organização oferece apoio gratuito e anónimo e é destinada a todos os homens que já passaram por tal situação.Nesta altura, Ângelo Fernandes contou toda a sua história à SÁBADO, num testemunho impressionante sobre o que passou na infância. "O que ele fez foi apresentar-se no meu universo como uma pessoa amiga, uma pessoa de confiança, que se preocupava e que mostrava interesse e afecto. Aos poucos, com esse tipo de postura, foi introduzindo alguns avanços. De forma muito calculada e pensada. Por exemplo: ele num dia dava-me um aperto de mão, depois disso já passava uma mão nas costas e depois a uma carícia na cara que já era mais desconfortável", contou a vítima, num depoimento que pode recordar aqui.

"Eu tinha 11 anos quando tudo isto começou a acontecer. Ele era um homem amigo de toda a gente. Conhecido da minha mãe, bem estabelecido na comunidade – que tinha um bom estatuto - e uma profissão de respeito. Uma pessoa disponível e em quem as pessoas confiavam. Tinha cerca de 35 anos.
Eu e os meus amigos brincávamos perto da casa dele em Setúbal. Jogávamos futebol, porque havia uma boa área ali perto. E ele de forma amigável, digamos assim, aproximava-se e ia assistir aos nossos jogos. Nos momentos das pausas e nos momentos em que estávamos mais cansados punha conversa connosco. Perguntava se estava tudo bem, como corria a escola, se jogava bem futebol. Uma conversa completamente amigável. Falava bem com todos. Mas havia dois ou três rapazes com quem ele tentava criar uma ligação maior.
Nessa altura não percebi que havia qualquer intenção. Tinha apenas 11 anos e via um adulto sempre como uma figura de respeito, em quem confiamos. 


O que ele fez foi apresentar-se no meu universo como uma pessoa amiga, uma pessoa de confiança, que se preocupava e que mostrava interesse e afecto. Aos poucos, com esse tipo de postura, foi introduzindo alguns avanços. De forma muito calculada e pensada. Por exemplo: ele num dia dava-me um aperto de mão, depois disso já passava uma mão nas costas e depois a uma carícia na cara que já era mais desconfortável.
Lembro-me que uma vez - que demonstra que ele estava muito à vontade no que fazia – ele sentou-se junto a mim e colocou a mão dele debaixo da minha t-shirt. Acariciou-me as costas. Criou-me desconforto, mas ao mesmo tempo, como era uma pessoa amiga, que mostrava interesse, que toda a gente gostava e que diz ser boa pessoa, qualquer momento de desconforto que eu tivesse ou qualquer momento confuso era muito complicado assumi-lo. Mesmo que tivesse algum momento de dúvida pensava que era da minha cabeça.

Ele avançava aos poucos. Se eu tivesse alguma reacção contrária, ele voltava atrás e não me tocava. Voltava à estaca zero e depois voltava a fazer pequenos avanços. Chegou a fazer-me carícias à frente dos meus amigos, mas era muito discreto. Era sempre junto da casa dele, porque acho que o objectivo era levar-nos para a sua casa.

Frequentemente dizia para irmos a casa dele beber água, ou para vermos televisão. Queria retirar-nos da rua. Chegámos a lá ir, porque ir à dele ou à de qualquer outro vizinho, no fundo, para mim era igual. Todas as pessoas do nosso bairro eram pessoas de confiança.
A primeira vez que fui a casa dele passei um serão com ele só a ver televisão. Mais nada. Eu sentado no sofá. Ele ao meu lado. Sem qualquer tipo de toque. Só isso. Não houve qualquer comportamento agressivo ou suspeito. Hoje, quando olho para trás, compreendo que este era só mais um passo para mostrar que era uma pessoa amiga e de confiança. Não me recordo de falar com nenhum familiar sobre esta visita a casa dele, e mesmo que o fizesse não seria de uma forma de denúncia ou de comentar alguma coisa estranha porque era uma coisa frequente. Também fui várias vezes à casa do vizinho do lado ver televisão e jogar. Não era nada descabido.
Outro dos avanços foi quando ele estava ao meu lado e punha a mão por cima de mim, como se estivesse a abraçar-me. Por vezes desapertava um pouco a camisa para mostrar os peitos dele. As calças por vezes também estavam desapertadas e o cinto aberto. Aos poucos ele ia avançando e mostrando que estava disponível para outro tipo de comportamento. Mas sempre reiterando a ideia que era natural, que ele era uma pessoa amiga e que tudo o que se passava ali entre nós era seguro.

Estava sempre a passar essa ideia de que era uma pessoa amiga. 'Se quiseres falar de alguma coisa é natural. Eu posso-te ajudar', dizia-me. Tentava instaurar em mim uma curiosidade que não era minha. Dizia-me que era natural uma criança sentir-se curiosa em explorar o corpo de um adulto. Ou que um adulto deixe que uma criança explore. Havia uma grande preocupação em passar essas mensagens.
Nos momentos de dúvida, cheguei a perguntar aos meus amigos se eles também iam lá a casa, se eles também confiavam naquela pessoa e as respostas eram todas elas positivas. Todos diziam que era um amigo e uma pessoa de confiança. Não havia nenhum feedback externo que correspondesse à minha confusão e desconforto.
Não sei se mais algum meu amigo foi abusado sexualmente, porque nós éramos muito novos. Entretanto já passaram 24 anos desde que isto aconteceu e não tenho praticamente contacto com os meus amigos de infância. Pode ser que agora, com esta divulgação, algum se sinta à vontade em vir ter comigo e falar.
Ainda há muitas memórias às quais não tenho acesso. Na primeira vez que sofri concretamente de um abuso sexual senti que alguma coisa não estava correcta. Tinha aquela sensação, muito particular nos miúdos, de ter feito algo que não podia fazer.

Há sempre aquela preocupação dos pais em avisar-nos para não falar com pessoas desconhecidas: 'não fales com estranhos, não aceites nada de estranhos'. Mas neste caso não era. Essa pessoa não existia na minha vida. Não havia ninguém estranho ou suspeito. Isso provocava alguns confrontos internos, porque mesmo quando me sentia confuso, tinha uma pessoa sempre a dizer-me que aquilo era natural. Tudo o que sentia de errado, achava que era criação minha. Pensava: 'sou eu estou errado'.
Não quero entrar em pormenores, porque isto ainda é um tema penoso para a minha família. Posso dizer que ele expunha-se e convidava-me ao toque, à carícia e à interacção sexual.

Fui vítima de abuso cerca de um ano. Até chegar ao abuso propriamente dito, ele levou meses a construir uma relação de confiança. Foi preparando, literalmente, todo o cenário, toda esta situação. Fui manipulado por ele. Inicialmente, ele estabelecia uma relação de confiança, mas depois ia "subindo a parada". Foi avançando e já havia uma questão constante de abuso. Não me recordo da frequência, mas deveria ser uma ou duas vezes por semana.

Tinha a sensação que se falasse com alguém da família essa pessoa ia deixar de gostar de mim e já não me amaria mais. Tinha um medo enorme de pensarem que estava a fazer alguma coisa má e que eu era o culpado desta situação. Todo este medo, de ser julgado e até excluído acabou por levar-me a achar que o melhor era não contar a ninguém. Pensava: 'Se as pessoas não souberem o que se passou vão continuar a gostar de mim'. A vergonha e o sentido de culpa ficam sempre do lado da vítima e acabam por bloquear a pessoa. Sentia nojo de mim mesmo.
Na última noite em que aconteceu o abuso, ele levou-me para a cama dele, eu estava a despir-me e ele estava já semi-despido. Alguém bateu à porta. Nessa altura, toda a postura que ele tinha desapareceu naquele instante. A expressão mudou e ficou em pânico. Estava com medo, meteu-me a mão na boca e pediu-me para não fazer barulho, não respirar sequer. Disse-me que ninguém podia saber, que ninguém podia ouvir. Foi nesse momento que percebi que algo de errado estava ali a acontecer, apesar de não saber o quê. A pessoa que me dizia que estava tudo bem, que era tudo correcto e que estava tudo normal, não podia ter tido aquela reacção. Ficámos ali em silêncio, ele continuava com a mão na minha boca. De seguida, aproveitei o facto de ele ter ido perceber se a pessoa já tinha ido embora, vesti-me e nunca mais apareci. Fugi.
No entanto, ele tinha de tal forma confiança no que fazia, que chegou a ir ter comigo num sábado de manhã, quando estava com a minha mãe, e abordou-me: 'Então nunca mais lá foste? Já não queres ir lá a casa?'. 'Agora já não vou jogar futebol', respondi. Evitei-o e inventei uma desculpa qualquer.
Nessa altura, percebi que tinha sido o momento de ruptura. Desde então deixei de aparecer naquela zona do bairro e de frequentar a rua dele. Não sei quem bateu naquela porta, mas essa pessoa salvou-me.
Sempre tive problemas de confiança resultantes dos abusos que sofri. Cresci a achar que qualquer homem amigo que se aproximasse de mim ia cobrar essa amizade sexualmente. Foi isso que o abusador me ensinou. Não aceitava que algum homem fosse meu amigo. Nem mesmo um professor.

Na minha adolescência, do ponto de vista íntimo, existia também um mau-estar que eu não conseguia justificar. Escondia, porque, no fundo, o meu primeiro contacto sexual foi com um homem adulto de 30 e tal anos quando eu tinha apenas 11. Uma pessoa que tem uma relação sexual consentida é porque tem desejo e porque quer e aos 11 anos não foi porque quisesse ou tivesse desejo.
Quando tinha já 29 anos encontrei-o na rua e acenou-me, como se fosse um grande amigo que já não me via há anos. Foi completamente natural para ele. Não acenei de volta, senti mau estar, um nó no estômago. Virei as costas e fui para casa. Naquela noite começaram a surgir várias memórias.
Passei três dias sem dormir e sem conseguir parar estas memórias. Nessa altura dividia casa com uns amigos, que começaram a estranhar o facto de não socializar e de não aparecer nos espaços comuns da casa. Quando vieram falar comigo, acabei por desabafar. Já estava num momento de sufoco. Foi a primeira vez que contei a alguém, já em idade adulta. A minha família foi a última a saber. Era mais fácil contar a um amigo.

Deram-me o apoio que eu precisava na altura. Se eu não estivesse em pânico, talvez a vergonha se tivesse apoderado de mim.
Depois acabei por falar com dois amigos realmente muito próximos sobre o assunto. Tratei-o de uma forma muito pragmática e depois acabei por enterrar este assunto.

Até chegar ao ponto de pedir ajuda profissional ainda foram três/quatro anos. Não era capaz de olhar para mim com 11 anos e perceber que não tive culpa. Eu pensava: 'Como é que não vi os sinais? Como não percebi? Porque aceitei o convite?'

Quando já estava a viver no Reino Unido, com 32 anos, o assunto voltou. Estava no trabalho quando encontrei uma notícia sobre um homem que se tinha suicidado por ter sido julgado num caso de pedofilia. Eu já tinha trabalhado com ele e fiquei surpreendido. Essa situação originou uma ponte para o passado outra vez. Foi ai que não consegui mais. As memórias voltaram, passava o dia com pensamentos sobre os abusos. Tinha pesadelos e acordava a gritar. No trabalho não me conseguia concentrar.
Fui à Internet e procurei apoio para vítimas de abuso sexual. Encontrei a organização Survivors Manchester – que dá apoio a homens que tenham passado por este tipo de situações. Enviei um email. Escrevi apenas: 'preciso da vossa ajuda'. Tinha receio de utilizar as palavras 'abuso' ou 'vítima'. A organização respondeu-me e convidou-me para participar numa sessão introdutória.

Naquela altura, senti que estava no meu limite. Eu nunca pensei em suicidar-me, mas por vezes pensava que se acontecesse alguma coisa e a minha vida acabasse naquele dia iria sentir-me aliviado. Questionava-me: 'quando é que isto vai melhorar?' e nunca havia melhoria.
Mais tarde, comecei a frequentar os grupos de apoio - gratuitos e confidenciais. Estavam cerca de sete homens na primeira sessão, lembro-me que ia com muito receio e sentia-me muito exposto. Naquela sala todos sabiam a razão porque ali estava e isso deixa-me extremamente sensível.
Todos dizem que a primeira vez que se frequenta um grupo de apoio é a mais complicada, mas a segunda foi a mais difícil para mim, porque já sabia ao que ia e o que me aguardava.
     
Tinha sessões uma vez por semana e frequentei esta associação cerca de três anos. Praticamente toda a estadia que estive em Manchester. Realmente o grupo de apoio tem um poder de ajuda enorme. O fundador da organização de Manchester disse-me uma vez: "Eu nunca vi ninguém a morrer por falar sobre aquilo que sente, mas o contrário já não posso garantir". A verdade é que o silêncio corrói, o silêncio consome. E sempre que um homem quebra o silêncio está a recuperar.

As primeiras pessoas da família com quem falei foram duas irmãs mais velhas. Nessa altura, havia um conflito muito grande entre o meu lado racional e emocional. Por um lado sentia que não tinha culpa do que se tinha passado, mas por outro não tinha a certeza se isso era verdade. O apoio delas foi muito importante para mim. Ainda estava em Manchester. Contei por mensagem porque era mais fácil para mim ser por escrito. Responderam-me com afecto: 'Vai ficar tudo bem. Amamos-te muito. Quem me dera estar aí para te abraçar. Estamos aqui ao teu lado'. Foram palavras muito importantes.
 
Contar à minha mãe ainda demorou algum tempo, porque mãe é mãe… Quis falar com ela só quando eu já estivesse bem comigo próprio. Até que um dia lhe disse que precisávamos de conversar, que tinha algo pessoal para partilhar com ela. Contei-lhe o que me aconteceu e que frequentei ajuda. Ficou em choque. Disse-me que lhe devia ter contado mais cedo para me poder ajudar. Respondi-lhe que não conseguia. Não foi fácil, especialmente por ela sentir uma certa frustração por não ter conseguido impedir que isto acontecesse ao seu próprio filho. Mas ela não podia. Ninguém podia. A única pessoa que podia ter evitado isto era o homem que me abusou. A culpa é exclusivamente daquele homem.
Nunca senti vontade de vingança porque o que eu tinha para resolver estava dentro de mim. A minha justiça agora revela-se através da associação Quebrar o Silêncio, com o facto de conseguir ajudar outros homens."   

* Temos o maior nojo pelos pedófilos e também por quem os protege ou por quem é complacente quando pune. 

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