11/02/2017

SÍLVIA MARTINS

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Das Novas Ditaduras

Hoje, vamos falar de coisas sérias. E quando um texto começa assim, já sabe, a partir daqui a coisa só pode mesmo “descambar”. Mas hoje tem mesmo de ser.

Imaginem o seguinte cenário, um Fulano, com habilitações académicas, mais que muitas, boa imagem, variadas experiências profissionais, possuidor de excelentes capacidades de comunicação, criativo, flexível, atualizado, interessado e responsável procura um novo “desafio profissional”. (

Sim, que na conjuntura atual ninguém procura emprego ou trabalho ou forma de ganhar para o pão… não, atualmente, o Fulano tem de procurar “novos desafios profissionais” ou corre o risco de passar por desesperado ou desinteressado, venha o Diabo e escolha…) Bom, o Fulano, cheio de variadíssimas experiências, tem Mestrado em elaboração de currículos, desde o European Pass, aos mais criativos. Aliás, ele é tão conhecedor deste domínio que tem vários currículos e portefólios gravados no Ambiente de Trabalho do Computador e até em PDF na Cloud do telemóvel, para que possa enviá-los, qualquer um deles, a qualquer hora, para qualquer oferta que possa eventualmente surgir. O “desafio” começa logo aí, Fulano já conhece inclusivamente o tipo de currículo que “agrada” a determinado anúncio e lhe garante a chamadinha da praxe para a tal “conversa informal”.

Sim, porque hoje em dia, também já ninguém vai a uma entrevista, não… Ainda que a tal “conversa informal” só o seja de tom, ninguém se pode atrever a tomar por certo que de lá sairá com uma proposta de trabalho. Não! Estas conversas são, tão apenas e só, “manifestações de interesse”, como em qualquer convite do Tinder… apenas para “nos conhecermos”. Mas Fulano, já vos disse eu, é “Pro”. Ele é, de acordo com o “slang”, TOP! Recebe por dia umas duas a três chamadas de “manifestação de interesse profissional” e ele é tão bom, mas tão bom, que agrada na maior parte delas. É versátil, é bom conversador, é culto, é cordial, tem tudo o que um bom empregador deseja. O azar deste fulano é que “os bons empregadores” são coisa rara, escasseiam, estão em vias de extinção e quando existem, são como as casas de banho limpas, estão quase sempre “ocupados”.

 Mas nem assim o fulano desiste e já foi “empregado exemplar” em vários dos sítios por onde passou. As cartas de recomendação que coleciona assim o provam. “Extremamente assíduo e pontual”, como um bom aluno. “Organizado e disciplinado, com provas dadas de competência profissional”. “Brioso”, que orgulho! E ao fim de dois anos, quando conheceu a sorte de ter um contrato de trabalho, lá pegou ele nas malinhas e saiu porta fora, com direito a palmadinha nas costas, porque ele “era mesmo bom moço”. O azar do Fulano é que os bons empregados precisam de bons empregadores e ele ainda não encontrou o dele.

Mas os últimos tempos têm sido duros para o Fulano, que anda desmoralizado e tristonho, desde que mesmo sem rendimentos, deixou de constar da lista dos Centros de Emprego. “O desemprego baixou no país”, dizem-lhe. E ele ri.

Ofertas com contrato, é por um canudo. E ele até entende, é que as despesas sociais são um encargo para as empresas e as contratações são um luxo para o comum dos mortais. Ofertas, com horas fixas e trezentas e duas mil obrigações, só a recibos, quando calha… e sem direito a baixas, ou subsídios, na base do “enquanto nos fores útil, és o melhor”, mas, como qualquer relação moderna que se preze: isto é tudo, “no strings attached”. E o Fulano lá vai aceitando, para pagar as contas, quando dá e sem refilar muito, que o Cicrano até já disse, que se ele vacilar, Beltrano lhe fica logo com o lugar.

Posto isto, Fulano anda triste, o médico diz que te inícios de depressão. Que tem de dormir bem e comer bem, mas não dá… os horários não permitem e a ginástica dos dias de tarefeiro, mal lhe permite levar o filho à escola. É a Ditadura dos Nossos Dias, e a sorte de quem a não tem

IN "AÇORIANO ORIENTAL"
10/02/17

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