07/02/2017

MARTA CAIRES

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O melhor de todos

A escola é uma casa velha e abandonada, o professor morreu cedo e não me deu tempo para mostrar tudo o que fez por mim.

O sol bate no que sobra do prédio, está assim há anos, esburacado, sem portas e com desenhos nas paredes. Uma casa grande e velha, daquelas que se avista aqui e ali, com o quintal engolido pelo mato e o telhado prestes a ruir. E é tudo quanto resta da minha escola primária. Ainda tem vista para o campo do Marítimo e hoje há treino da equipa sénior, mas o lugar está mudado e até a mim me custa a lembrar como era tudo há 40 anos, quando desci de dois a dois os degraus e entrei na sala do professor Baltasar.

Eu tinha seis anos, o cabelo curto como se fosse um rapazinho e usava botas ortopédicas. A minha mãe levou-me pela mão, mas eu sabia o caminho de cor. E não chorei, nem tive medo, nem vergonha, nem inventei histórias e dores de barriga. Todos os miúdos arranjavam uma desculpa, um truque qualquer, alguns eram devolvidos à procedência e só voltavam no ano seguinte. A minha mãe ficou à espera, mas eu queria muito aprender a ler, era por causa das legendas dos filmes da televisão e das fotonovelas da ‘Crónica Feminina”.

E sentei-me à frente, não fosse a informação perder-se até ao fundo da sala, onde estava um espantoso mapa mundo. Da janela, víamos o mar e, às vezes, o professor Baltasar ficava parado a olhar. Outra vezes, contava histórias sobre os barcos, as ondas e as nuvens. Histórias divertidas, daquelas que dava vontade de rir. O meu irmão dizia que era tudo mentira, o que me ofendia muito. No mundo havia três ou quatro pessoas na categoria de deuses, o professor Baltasar era uma delas. Eu não tinha dúvidas que, de todos os professores, me tinha calhado o melhor.

O meu irmão até podia dizer que era tudo mentira, mas eu não vacilava. O professor era o melhor e não era à toa que, daquelas quatro salas da escola, ninguém tinha uma vida regalada como a nossa. Palavras difíceis para escrever cinco vezes cada uma? Cópias e contas? Os trabalhos de casa eram coisas como escrever poemas, ver o episódio da telenovela e fazer o resumo na aula. E quando a aula ficava aborrecida, o professor organizava visitas de estudo, mesmo por ali, nos arredores e ensinava coisas que não vinham no livro de contas ou no de leitura. A maior parte estava apenas dentro da cabeça, naquela imaginação contagiante.

Aprender era, segundo o professor, a capacidade de fantasiar, de imaginar, de rir das nossas asneiras. E é claro que aquilo de não ter trabalhos de casa, de aprender como se fosse a brincar não agradava a todos. Uma vez por outra, naquelas reuniões de mães, havia queixas, o professor não ensinava e ensinar há 40 anos metia régua. Era o tempo em que, quando as coisas corriam mal, as mães aconselhavam: “chegue-lhe que ele merece”. Na minha sala isso do “chegue-lhe” era raro, acho que me lembro de todas as vezes em que o professor Baltasar perdeu a paciência e tirou a régua da gaveta. A mim coube-me quando fizemos todos uma expedição pelas bananeiras até ao campo do Marítimo.

Mas tudo isto são histórias, coisas com 40 anos, que já só existem na minha cabeça. A escola é uma casa velha e abandonada, o professor morreu cedo e não me deu tempo para mostrar tudo o que fez por mim. Eu gostava de o ter por aqui ainda para conversar, para falarmos da escola, de como era antes e de como é bom saber que o melhor de nós vive connosco, na nossa imaginação e nas memórias que guardamos. E de como eu seria outra pessoa se não o tivesse tido na minha infância a contar histórias sobre o mar, os barcos e as ondas. 

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
05/02/17

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