02/02/2017

MANUEL SÉRGIO

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Aurélio Pereira: 
meu companheiro de jornada 

Sempre que me surge uma situação propícia, mormente pela simpatia contagiante de quem me rodeia, não me esqueço de relembrar que nada sei de futebol e portanto nunca tentei ensinar futebol a ninguém. Não posso negar que cheguei a fazer amizade com nomes grandes do futebol português. Não posso também esconder que, hoje ainda, alguns treinadores têm a bondade de permitir-me um demorado diálogo sobre esta problemática.

Mas, apesar de tudo isto, nunca me senti com a força psicológica bastante para sentir-me um especialista nesta modalidade desportiva. Aliás, para mim, “quem só teoriza não sabe”. E eu, no que ao futebol diz respeito, continuo encerrado na “turris eburnea” da teoria. Então, o que venho eu fazendo, nas minhas aulas e nas minhas conferências, sobre o futebol, e nas minhas conversas com “agentes do futebol”? Pura interdisciplinaridade – nada mais! E lembrando portanto aos meus interlocutores que não há conhecimento científico que não tenha implícito uma filosofia inspiradora.

Entrelaçando o particular (do futebol) com o geral (do mundo em que o futebol se movimenta e desenvolve) é pouco saber só de futebol, quando se julga que se sabe de futebol. Estiolar no recanto do futebol, com a convicção de que o futebol não deverá informar-se, esclarecer-se com uma teoria e uma síntese mais amplas - trata-se de um lamentável erro que, no século XXI, já não se justifica. A prática não deve subordinar-se à teoria, mas deve encontrar, nela, capacidade interpretativa e ainda a significação e o sentido do que se faz. Não é por acaso que os grandes cientistas nos deliciam com vastos conhecimentos, no âmbito da literatura, da arte, da filosofia. É que não há conhecimento científico inovador, sem uma recolha de dados, em campos que são humanos, mas não são científicos. Sem uma cultura orientadora, não há ciência!

O meu Amigo Aurélio Pereira, que ensinou futebol e mais do que futebol ao Paulo Futre, ao Simão Sabrosa, ao Ricardo Quaresma, ao Luís Figo, ao Cristiano Ronaldo, ao Rui Patrício, ao Adrien, ao William Carvalho, etc., etc., é um cidadão de indubitável inteireza moral, sem a qual não teria sido (como poucos, ou nenhum, no mundo todo, acrescento eu) um inigualável formador de jogadores de futebol. Com a atribuição da Medalha de Mérito Desportivo ao treinador Aurélio Pereira, a Câmara Municipal de Lisboa praticou um ato justo, que restitui ao adjetivo o seu pleno significado. De facto, o prémio é justo, no sentido de “merecido” e mais “devido”. Não conheço melhor exemplo de amor e devoção ao futebol do que, de essencial, emerge da prática profissional do diretor da formação do Sporting Clube de Portugal – amor e devoção que se desenvolvem no mais exato e genuíno sentido nacional. Com efeito, só entre os campeões europeus de 2016, dez deram os primeiros passos e corridas e chutos, no futebol, sob a sua orientação, sob o seu olhar verdadeiramente paternal.

Não tenho qualquer receio de escrever que Aurélio Pereira é uma síntese viva dos mais altos valores que na prática desportiva se aprendem e se vivem. Mas… quantos livros escreveu ele? Nenhuns! Quantas conferências proferiu? Bem poucas! Na vida, no entanto, mais importante que o esplendor das palavras é o mérito das obras. Acima do interesse intelectual ou literário, situam-se os mais altos valores humanos. E tudo o que o Aurélio Pereira tem feito está carregado de história, de significações, de humanidade. A sua prática reporta-se, essencialmente, a ideias, a juízos, a valores, com uma função condicionante e condutora. Sem estas ideias, sem estes juízos, sem estes valores, não se entenderá jamais a presença de Aurélio Pereira no Sporting C.P. e no futebol português.

Do futebol tem este “senhor do futebol” um conhecimento fraternal, magistral e despretensioso – é seu íntimo e amigo de todos os momentos. Mas, porque sabe que não há jogos, mas pessoas que jogam, para ele, gostar do futebol é principalmente gostar dos rapazes que, com ele, aprendem a jogar futebol. Disse-me, certo dia: “Tive convites para orientar equipas do Nacional da Primeira Divisão, mas não fui capaz, nem de deixar o Sporting, nem de deixar a minha rapaziada, a minha segunda família”. E, com um lampejo de emoção, aduziu: “Posso estar errado, mas estou no futebol como estou na vida. Sem determinados valores, não sei viver”. Eu aproveitei para sugerir: “E o facto de colher tantos êxitos com o que faz também o não deixam sair das suas atuais funções…”. Ele atalhou: “Sim, é verdade. Não sei se tenho um grande domínio da pedagogia, mas os miúdos dão a entender que gostam de trabalhar comigo”.

E, com a mão espalmada a indicar-me as larguezas do mundo: “E, quando jogam no estrangeiro, não se esquecem de mim, de enviar-me notícias”. E, com o bornal bem repleto de vivências, confidenciou-me: “A mãe do Cristiano Ronaldo, se tem problemas que a preocupam, não se esquece de consultar-me, de ouvir a minha modesta opinião, com alguma frequência. É uma senhora que eu admiro muito. É uma grande mãe e avó”. Fala-se muito de uma “Escola de Qualidade” e coloca-se no centro da controvérsia uma particular referência a três disciplinas fundamentais: a leitura, a escrita e o cálculo, sem esquecer a aprendizagem de uma língua estrangeira, nem deixar de incentivar a iniciação às tecnologias da informação. O Aurélio Pereira, num mundo em mudança exponencial, bem pode ensinar aos professores e educadores que só educa quem ama o que faz e quem ama também os seus educandos, para além de tudo o mais.

Fui, na companhia do Dr. José Lima, responsável pelo PNED/IPDJ, ao Estádio Universitário de Lisboa, à cerimónia, presidida pelo Dr. Fernando Medina, da atribuição da referida Medalha de Mérito Desportivo. Quando chegou a minha altura de abraçá-lo, segredei ao Aurélio Pereira: “O meu Amigo é meu companheiro de jornada intelectual. Tudo o que eu teorizo o Aurélio pratica e bem melhor do que eu saberia fazer”. E, achegando-me ternamente ao peito, concordou, num fio de voz: “É verdade! Eles não sabem, nem sonham!”. Só há 3 ou 4 anos (não mais) eu dialogo com o Aurélio Pereira, acerca do treino de jovens jogadores de futebol. Que o mesmo é dizer: ele nunca precisou de mim, para nada, no âmbito do seu trabalho diário. No entanto, durante um dos nossos habituais almoços (a três: o José Lima, o Aurélio e eu) e depois de conhecer, em resumo, a minha visão do treino, teve a bondade de afirmar: “Sempre fiz o que o Manuel Sérgio defende, na sua tese de doutoramento. E muito antes de conhecê-la. Pode crer!”.

Também ele não sabe, nem sonha, o bem que me fez. Sou um simples estudioso do desporto em geral e do futebol em particular, mas nunca treinei ninguém, nem nenhuma equipa, ou seja, sou um teórico tão-só. E (se bem penso) quem só teoriza não sabe. Verdadeiramente, só se sabe o que se vive. Um dos defeitos que eu encontrei, no desporto, de há 50 ou 60 anos atrás, residia na separação entre ciência e filosofia, entre cultura humanista e cultura científica, entre o mundo da consciência e o mundo dos factos. Como se a filosofia e a cultura humanista e o mundo da consciência nada contassem ao rendimento, na prática desportiva. Sem alardes de promoção pessoal, o Aurélio Pereira, há muito que sabe (bem antes de mim e sou mais velho do que ele) que no futebol há pessoas que jogam futebol. E não basta, por isso, treinar futebol, numa equipa de futebol. Está por fazer-se uma homenagem do futebol nacional a Aurélio Pereira: é que este Homem é mesmo um exemplo… como raros o são!
 
* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

IN "A BOLA"
31/01/17

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