11/02/2017

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 HOJE   
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"

"Aqui não há islamofobia. 
Portugal é um paraíso, 
devíamos orgulhar-nos"

Almoço com Abdool Vakil
"Astuto", "dono de uma habilidade exemplar para os negócios", "um estratega nato". Não são meus os elogios. É assim que Abdool Vakil é descrito nas inúmeras publicações internacionais - incluindo a Euromoney e a Institutional Investor - que lhe dedicaram artigos de páginas inteiras, fazendo até capa em algumas delas, nas décadas de 1970 e 1980. Nessa época em que os financeiros eram uma espécie estranha para a maioria do país, havia um português ainda jovem e já internacionalmente reconhecido pela sua carreira. E a quem a capacidade de fazer Portugal voltar aos mercados com condições incríveis - uma taxa de financiamento com uma margem ou spread de 1%, só igualada em outros 27 países de todo o mundo - depois dos instáveis anos do 25 de Abril rendeu a alcunha de Mr. Spread.


"Sempre gostei de desafios, estou sempre à procura de novas coisas - a minha mulher não pode com isso, porque me vê sempre sob stress - e nessa altura andava a arranjar dinheiro para algumas empresas públicas." Foi então chamado a "negociar com a banca internacional as centenas de milhões em financiamentos para a República Portuguesa e fui eu que fiz a primeira operação em eurodólares", orgulha-se. "O país estava a pagar nessa altura margens de 1,75% e eu fui ter com o Dr. José Silva Lopes e disse-lhe: senhor governador, vou arranjar um spread muito mais baixo, de 1%. E ele achou impossível. Então apostámos um almoço e eu ganhei - fomos à Cervejaria Alemã, ali no Cais do Sodré." Recorda-se - e ri-se - como se tivesse acontecido tudo na véspera do nosso encontro, e não a seguir ao 25 de Abril, como há de explicar mais adiante.

À mesa do Polícia, nas Avenidas Novas - onde é ainda cliente habitual, como eu fui em criança -, vai contando a sua história como o faz quem viveu muitas vidas. Traz consigo a ainda Lourenço Marques onde nasceu há quase 78 anos, numa família de ascendência indiana, do Gujarat, chegada a Moçambique em 1895. Conserva a paixão pelos números que o levou a formar-se em Finanças no ISCEF (hoje ISEG), tendo na altura conhecido dois ex-Presidentes (Cavaco Silva, colega de curso, e Jorge Sampaio que estava na Faculdade de Direito) e Ernâni Lopes também seu colega de curso, e a dar aulas de Matemática na faculdade em Lisboa e em Maputo. Bem como os desígnios que lhe cabiam enquanto filho mais velho (com um irmão médico e outro advogado) de cuidar dos negócios da família no Ultramar. Mas a Casa Coimbra, onde chegou a estar empregado quando o pai morreu - tinha ele 14 anos -, não seria o seu destino e nesse a mãe viria a ter um papel fundamental ao enviá-lo para Lisboa para terminar os estudos. Tinha então 17 e não tardaria a conhecer a mulher com quem se casou numa mesquita de Paris há 55 anos - Rosária, portuguesa católica, sua colega no Instituto Comercial de Lisboa, que mais tarde viria a converter-se ao islão e com quem tem três filhos e seis netos.

É pela família e pela religião que arrancamos a conversa, tomada a decisão sobre a refeição, que para mim é rápida - um delicioso rim de vitela, que é raro encontrar por aí - mas para Abdool Vakil só chega depois de conselho avisado sobre o bacalhau à Brás. "Só como carne halal" (de animais abatidos segundo as regras do Alcorão), diz, e desafia-me a acompanhá-lo numas amêijoas à Bulhão Pato. A religião também lhe veda bebidas alcoólicas, por isso não me acompanha na cerveja - pede água. "O meu filho até é vegetariano" - é professor de História no King"s College, em Londres. As duas filhas herdaram a veia financeira - a mais velha vive em Nova Iorque e apenas a mais nova está por Lisboa, onde já só vive também um dos netos.

Hoje, o banqueiro tem mais disponibilidade para a família. O tempo divide-se, por isso mesmo, entre Lisboa, Nova Iorque e Londres, onde vai reunir no próximo mês toda a família para os 18 anos da neta. Mas não é capaz de deixar de fazer aquilo que melhor sabe: contactos. Alturas houve em que fazia tantos e a vida era de tal forma dinâmica que não conseguia mantê-los atualizados, contava ao DN nos anos 1990. Mas sobretudo desde que lhe foi amputado o Efisa, no processo de nacionalização do BPN, tem estado focado na atividade que desenvolve enquanto líder da Comunidade Islâmica. 

Pergunto-lhe se gostaria de voltar a ficar com o banco que criou - originalmente, uma sociedade de investimentos apoiada pelo grupo Warburg, que tinha acionistas como a Kuwait International Investment Company, o Bankinter e a Sonae. "A minha mulher divorciava-se de mim!"
Ri-se. Nota-se, porém, alguma saudade desse tempo em que fez a sociedade de engenharia financeira, à medida do que aprendera com um banqueiro judeu sediado em Londres. "Sir Sigmund Warburg tinha umas filosofias muito próprias. Por exemplo, o seu banco não tinha placa cá fora porque ele achava que não valia a pena gastar dinheiro nisso; se as pessoas soubessem que era bom iriam lá ter. 
E tinha salas para almoços de negócios em que os clientes eram convidados por turnos, às 12.00 e às 13.00 - e o segundo era melhor, porque se prolongava um bocadinho e como nem serviam vinho eu ficava satisfeito. Era stricktly business." Recorda que o seu mentor dizia sempre: "Emprestar não é o nosso negócio; o dinheiro sai de manhã e volta pela hora do chá. E eu adotei esse lema: não emprestamos o nosso dinheiro." E assim, como intermediário, liderou várias operações para empresas públicas como a RTP, a TAP ou a EDP, e até para a Região Autónoma da Madeira. "O Dr. Alberto João Jardim gostava muito de mim."

O telefone interrompe-o - há de tocar meia dúzia de vezes e Vakil atenderá, mas gasta o tempo necessário para explicar que não pode falar. Demora-se apenas uns segundos mais quando encontra a filha do outro lado.

Incapaz, ainda hoje, de estar parado - "é disto que eu gosto" - esteve há menos de um mês na Índia, com António Costa, que propôs, a pedido da embaixadora de Nova Deli em Lisboa, para receber uma condecoração, visto na altura ser o único português condecorado em ambos os países (aqui é Grande--Oficial da Ordem do Infante D. Henrique). "É um orgulho que o primeiro-ministro português tenha sido distinguido lá", vinca, enquanto testemunha a "empatia" que sentiu entre Costa e o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, e a "ternura" com que foi recebido em Goa. Uma viagem de afetos, portanto, mas terá retorno em negócios? "Espero que sim." Vakil deu um contributo criando um grupo de jovens da diáspora, mas acredita que há muito mais para tirar desta relação entre Índia e Portugal. "Há potencialidades bilaterais em negócios, mas não podemos olhar só para estes dois países, devemos alargar a visão a outros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Os portugueses são muito bons, por exemplo, a intermediar o relacionamento entre certos países e Angola. Fazer esse triangulamento com países africanos seria muito importante."

O sonho de Abdool Vakil era ter conseguido fazer deste país "uma espécie de hub para a transição de fundos do Médio Oriente para África e o resto do mundo" e a Índia teria também um papel relevante. "Já estive em vários países do Médio Oriente e as pessoas de lá confiam em mim e têm interesse nisto. Mas nós falamos de simplex mas muitas vezes acaba por ser só complex. Podíamos ser um país fantástico, mas não somos muito pragmáticos, a burocracia domina."

Serve-me generosamente de amêijoas e molho antes de as tirar também para si - "as senhoras vêm sempre primeiro", repete várias vezes - e vai juntando frames que revelam a sua fama de homem de bons amigos, especialista em estabelecer contactos entre quem precisa de alguma coisa e quem tem algo para oferecer. "Tenho uma ligação forte à Turquia desde a visita do atual presidente Erdogan a Lisboa, em 2001" - pronuncia pausadamente: "Erdoan, o G com aquela coisa por cima não se lê", ensina-me. "À época, ele era primeiro-ministro e eu estava a colaborar como assessor num banco do Bahrein que tinha uma filial em Istambul." Uns amigos turcos pediram-lhe que mediasse um encontro e Vakil fê-lo, acabando por cair nas boas graças do então chefe de governo e do seu tradutor, mais tarde nomeado ministro dos Negócios Europeus da Turquia, Egemon Bagis (lê-se Bash), que quiseram oferecer-lhe um presente. "Eu disse o que sempre digo nestas ocasiões: para mim não quero nada, mas a mesquita precisa sempre. E então mandaram-nos mármores da Turquia e foi muito bom." 

Vai temperando o discurso com as frases como as disse originalmente, em inglês, e sempre com apurado sentido de humor. Gosta de conversar. Entusiasma-se como uma criança ao recordar estes episódios - que ainda se repetem, mesmo que o Sr. Spread apenas conte os que já sucederam há muito. Como o papel que teve no contributo da família real saudita, aquando da visita a Portugal do então príncipe Salman bin Abdul Aziz Al--Saud (hoje rei), para a mesma causa e da família Al-Muhaidib, também da Arábia Saudita, convencida a contribuir não só para a Mesquita de Lisboa mas também para o Centro de Estudos Islâmicos da Universidade Lusófona e para uma das causas de eleição do amigo Jorge Sampaio, os refugiados da Síria.

"O meu forte são os contactos", assume. E foi assim que conseguiu refazer a sua vida várias vezes. Como quando voltou a Portugal, no final dos anos 1980, depois de quase uma década na City. Por esta altura, já tinha percorrido todos os lados dos mercados financeiros. Passara pela revolução em Portugal - só não foi preso, em 1962, porque a mulher, grávida, foi buscá-lo à Cidade Universitária às 02.00 da manhã ("as mulheres têm este sexto sentido"), onde ouvia, por amizade ("gosto muito dele"), Jorge Sampaio, então líder do movimento académico das esquerdas. E em Moçambique, em cujo sistema financeiro esteve integrado ainda no tempo colonial, como secretário provincial de Planeamento e Finanças, aos 33 anos. O regresso foi decidido depois de a mulher escapar por pouco a uma emboscada em Maputo, em outubro de 1974, e se recusar a voltar com os filhos para lá. E foi para ficar junto da família que Vakil acabou por recusar um convite do novo governo moçambicano para continuar a assessorar as finanças e a banca do país.

Por cá, já tinha sido fundamental na recuperação da reputação creditícia do país - tendo criado e gerido a Comissão de Coordenação dos Financiamentos Externos no Banco de Portugal e depois, ao mesmo tempo, como consultor e negociador-chefe dos financiamentos internacionais da República, o primeiro dos quais assinado em 1978. "Nessa altura tudo tinha de ser aprovado ali, até uma transferenciazinha de cinco mil escudos, e sempre que passo pela Rua do Crucifixo lembro-me de como os amigos brincavam comigo: tu, um muçulmano, a trabalhar na Rua do Crucifixo?!" O percurso no Banco de Portugal (onde chegou em 1976) e nas Finanças (1978), num governo PS-CDS e a convite de Vítor Constâncio, então ministro das Finanças, valeram-lhe dois louvores do governo e o lamento, posto por escrito, do atual vice-presidente do Banco Central Europeu quando decidiu largar tudo para tentar a sua sorte em Londres - onde foi administrador do Manufacturers Hanover Limited, liderou depois o ramo britânico do BNU e, a seguir, criou a Gemini Financial Services, pequeno escritório com apoios de investidores da área do Golfo, tendo trabalhado muito de perto com o grupo S.G. Warburg em montagens de financiamentos para Portugal e outros países.

Hoje mantém-se bem ativo, mas é a Comunidade Islâmica que mais tempo lhe ocupa, sobretudo com a Mesquita de Lisboa em fase de acabamento e a nova mesquita em projeto, conta-me enquanto nos dedicamos ao prato principal. "Não entendo essas conversas um pouco polémicas que há para aí." Refere-se ao movimento de moradores e proprietários expropriados pela Câmara de Lisboa para construir a mesquita. A reação é-lhe incompreensível num país onde sempre o trataram como igual. "Não há dinheiro do Estado, apenas fundos europeus que estão disponíveis para obras, e o sítio é histórico, é onde estiveram os muçulmanos no passado, a Mouraria. Está a reativar-se aquela área e isso é um orgulho para todos nós. Mas suponho que as pessoas arranjam sempre pretextos para criticar..."

Nada que lhe dê motivos para uma verdadeira desilusão com o seu país. "Felizmente, aqui não temos islamofobia nem terrorismo. Eu faço parte de um think tank, o European Muslim Network, ao qual preside o professor Tariq Ramadan, e vou a reuniões semestrais onde há speakers de todos os países. Numa delas, o tema era a islamofobia e estávamos a ouvir descrições sobre o que se sentia na Turquia, na Alemanha, aqui e acolá. Até que chegou a minha vez e eu disse: "Vivo em Portugal há mais de 50 anos e ali tratam-me como amigo. Não sou o outro, sou o deles, embora saibam que tenho uma religião diferente. Nunca senti isso a que chamam islamofobia." E uma senhora pediu para falar e perguntou-me se eu vivia num paraíso. E não há dúvida de que é um paraíso. Nós não ligamos, mas devíamos mesmo ter muito orgulho nisto."

O que nos diferencia? "Deus queira que não aconteça, mas eu estou sempre a perguntar-me porque é que não temos problemas. E acho que é pela constituição da nossa comunidade muçulmana: os que vêm de fora ou são guineenses que têm nacionalidade portuguesa ou são-nos próximos e por isso não têm reação contra os portugueses; os indianos ou têm nacionalidade ou sentem-se iguais porque são bem tratados. A maioria sabe que é assim." De resto, a Comunidade Islâmica está de tal forma integrada na sociedade que todos os anos recebe a visita de cerca de 14 mil estudantes - meros curiosos ou interessados em aprender a língua e a cultura árabes - e prepara almoços solidários regulares abertos a pessoas carenciadas de todas as religiões. A mesquita organiza até almoços de Natal para os que pouco ou nada têm.

Pergunto-lhe se acredita que os movimentos populistas, extremados com os recentes ataques terroristas na Europa e a presidência de Donald Trump nos Estados Unidos, podem tornar mais difícil a coexistência. Foca-se em Trump, mais a pensar alto do que a responder-me. "Não sei bem o que ele quer, acho que ninguém sabe. Tem uns discursos incompreensíveis - amigos meus que vivem nos EUA ainda não entenderam como foi possível ele ganhar."

O fim do meu rim e a confirmação de Vakil da impossibilidade de dar conta da sua porção de bacalhau à Brás prenunciam o regresso da conversa ao futuro da Comunidade Islâmica de Lisboa, que reúne cerca de 50 mil membros - longe do que encontrou quando se instalou aqui e a sua família, a primeira muçulmana no país, recebia em casa os irmãos que por cá viviam, para rezarem juntos. Foi assim até a Arábia Saudita, a Líbia, a Turquia e outros beneméritos aceitarem ajudar a fazer nascer a mesquita da Praça de Espanha, inaugurada em 1984 num terreno também cedido pela câmara.


Muçulmano moderado, sábio e verdadeiramente ágil a obter consensos, tem sido difícil encontrar sucessor para os seus 28 anos de liderança, aonde chegou quando regressou de Londres, depois do afastamento de um dos 15 fundadores, Suleiman Valy Mamede, que criou a comunidade em 1968. "É demasiado tempo - é assim que se criam ditadores! Já por várias vezes afirmei o meu interesse em sair, mas têm-me pedido sempre que fique mais um bocadinho." Para o seu lugar no programa semanal da Antena 1 E Deus Criou o Mundo, onde partilhava o microfone com o representante da comunidade judaica em Portugal, Isaac Assor, e o católico Pedro Gil, já conseguiu substituto à altura - mas não sem o alertar para que "não dissesse asneiras!". "Passei há mês e meio ao jovem que trabalha comigo na comunidade, Khalid Jamal; não queria pôr lá alguém que não estivesse preparado para essa tarefa que transmite uma imagem correta do que é o islão e como se relaciona com as outras religiões, especialmente as abraâmicas. De resto, Vakil mantém-se ativo na Comissão da Liberdade Religiosa, de que é membro desde a fundação. "Também queria deixar, mas estamos a andar devagar, porque tem de ser uma pessoa esclarecida", diz, a preocupação a condizer com as suas intervenções públicas, repudiando sempre a radicalização e promovendo a liberdade e a diversidade religiosas.


 Outros compromissos marcados para a tarde do nosso encontro não deixam que o almoço se prolongue, mas ainda há tempo para me convencer a partilhar um prato de papaia e manga cortadas no momento - pede limão para espremer por cima, como se faz em Moçambique - e bebermos café. 

"A Comissão da Liberdade Religiosa vai ser recebida nesta tarde pelo Presidente em Belém e daqui a uns dias iremos ter uma visita sua à mesquita", explica. Também Vakil faz parte da lista de amigos de Marcelo Rebelo de Sousa - "desde que foi eleito, eu nunca lhe telefono, mas ele liga, às vezes à 01.00 da manhã. Não sei como aguenta não dormir mais de três horas por dia. Só peço a Deus que lhe dê saúde", diz, depois de reclamar vencido o pagamento do almoço. E já de pé, a despedir-se do pessoal da casa: "É sempre assim, sabe, as senhoras é que mandam."

Entrevistou JOANA PETIZ

* Para reflectir.

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