09/01/2017

PEDRO MARQUES LOPES

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O melhor de nós todos

Não tinha esta crónica pronta. Os meus amigos e camaradas do jornal bem me tinham avisado para a escrever; a morte de Mário Soares era uma questão de dias e seria importante tê-la pensado com tempo e cuidado, pronta para este dia. Sentei-me mais de uma vez para a escrever mas fui incapaz: não conseguia imaginar o meu mundo sem ele. Desde que me conheço que ele fazia parte da minha vida. 
Lembro-me de o ver chegar a Portugal depois do 25 de Abril com a minha avó a bater palmas em frente ao televisor; de ir pela mão do meu pai à Fonte Luminosa, porque era nele e só nele que confiávamos para lutar contra outra ditadura; recordo-me do debate televisivo com Cunhal; tenho fresca a memória de ele ser primeiro-ministro na cerimónia de adesão à CEE; de gritar contra ele nas eleições em que enfrentou o meu candidato Freitas do Amaral; de me arrepender de não ter votado nele; de o perceber muito bem quando não apoiou Ramalho Eanes. Podia, claro, continuar por páginas e páginas, tantas foram as vezes em que ele esteve presente na minha vida e na de nós todos - pessoalmente, deu-me a maior honra que tive.

Comecei a admirá-lo profundamente já numa fase adiantada da minha vida. Não me lembro de ter votado nele, mas lembro-me de ele me ter irritado, de pensar que ele estava enganado. Enervava-me aquilo que me parecia uma certa displicência, a bonomia em excesso. Disse-lhe isso uma vez e ele respondeu-me que esperava que eu votasse nele nas eleições seguintes (tinha 90 anos) e que esperava que eu já não me levasse tão a sério: tinha razão.

Não o compreendi demasiadas vezes e, no entanto, na maioria das vezes, muito depois, percebi que ele tinha quase sempre razão. Talvez só tarde tenha percebido que há mesmo gente maior do que o mundo e que esses são sempre difíceis de entender na juventude, possivelmente porque nessa idade estamos muito presos a convicções ideológicas, porque vemos o mundo a preto e branco. E Mário Soares era tudo menos alguém unidimensional, não era um homem de trincheiras, era sim um homem que conseguia ver o ângulo contrário.

Por outro lado, como é que eu podia escrever antes de ele morrer se não conseguia imaginar que alguma coisa o pudesse derrotar definitivamente. Para mim, era eterno. Não derrotável. Uma batalha perdida servia apenas para lhe dar mais força para a seguinte.

Um homem contraditório, que se zangava com amigos de toda a vida e que fazia de adversários de ontem amigos de hoje, mas que nunca se referia a ninguém como inimigo. Consciente de que as alterações do mundo e das circunstâncias mudam as nossas ações e até, muitas vezes, a maneira como vemos os outros, princípios e convicções. Mas sempre como primeiro combatente dos grandes valores da democracia e da liberdade.

Não vou discorrer sobre o seu papel na história, nem repetir o que muitos melhor do que eu dirão dos seus contributos únicos para Portugal e para o mundo. Só lembro que é um dos nossos grandes, um homem que marca os séculos XX e XXI portugueses e que nenhum compêndio sobre a nossa história nos próximos mil anos pode deixar de ter em lugar cimeiro. É também o único português que tem um lugar de honra na história europeia. Não podia assim deixar de ser, era um homem do mundo.

Muita gente próxima de Mário Soares fala do seu profundo amor pela vida. Dizia muitas vezes que nunca tinha acordado maldisposto, que nunca tinha tido uma depressão, que sempre tinha tido uma enorme alegria no que fazia.

Recordo-me de ele confessar na sua biografia, por exemplo, o seu gosto pela política. Mas o que ele respirava era um profundo amor pela vida. Pelos seus prazeres, pela sua imprevisibilidade, pelos seus desafios. Só um homem que ama a vida como ele a amava consegue amar a liberdade. Só quem vive, como ele viveu, vivendo cada minuto com toda a intensidade, como se cada segundo fosse decisivo, percebe quão valiosa é a liberdade. E foi essa a sua batalha constante. Combatida com uma coragem física impressionante, com uma generosidade única, com a força que só o profundo amor a alguma coisa permite.

Quando alguém morre não choramos só por quem nos morre, choramos também por nós. Porque fica um buraco, um vazio que não pode ser preenchido por mais ninguém. É aquilo que não podemos recuperar, aquilo que não voltaremos a ter que, em grande parte, choramos.

Com a morte de Mário Soares, ficamos em muitos sentidos órfãos. Mas temos de admitir que ele merecia descansar. Teve uma vida cheia. Uma vida rica. Uma vida que valeu a pena ser vivida. E a sorte que tivemos que a tenha vivido connosco!

Quem não é esquecido não morre, e devemos demasiado a Mário Soares para alguma vez o esquecermos. Nós, os nossos filhos, os nossos netos. Soares é fixe, mas é sobretudo eterno. E deixa connosco a responsabilidade de levarmos mais longe o combate de uma existência: pela liberdade, pela democracia, pela cultura, pelo Portugal que tanto amou e a que ajudou a dar forma, e que ainda hoje exige de nós um compromisso pessoal sem hesitações.

Obrigado, Mário Soares.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
08/01/17

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