08/01/2017

MAFALDA ANJOS

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Isto não é um obituário

…É um agradecimento. Em nome de uma geração que, como eu, nasceu em liberdade. A liberdade em nome da qual, toda a vida, Soares lutou e à qual serviu, com todos os músculos do seu corpo, a começar pelo coração

Não era nascida quando Mário Soares andou ao lado de Humberto Delgado, quando foi condenado ao degredo em São Tomé ou se bateu pela CEUD numas eleições que todos sabiam perdidas. Não me lembro da euforia geral quando, três dias depois do 25 de Abril, desembarcou em Santa Apolónia, regressado do exílio, nem do primeiro 1º de Maio que encheu a Alameda como nunca se tinha visto antes. Não acompanhei como jornalista a campanha de 86, nem guardo memória viva da famosa paulada que fez virar o jogo a seu favor. Mas tenho estas imagens gravadas na minha cabeça – são instantes obrigatórios da história contemporânea portuguesa, preciosidades de arquivo às quais tantas vezes como jornalista e editora voltei. Estas fotografias, tal como os seus escritos e entrevistas, ajudaram-me a construir (e desconstruir) o mito Soares, indiscutivelmente um dos grandes senadores da democracia portuguesa.

Mais do que o facto de ter sido o mais influente político nacional do último quartel do século XX, fascinou-me sempre o homem e o seu carisma. Aquela combinação rara de atributos que fazem de alguém um ser especial, e por consequência (e não a priori), um político maior. Desde logo, a coragem, a primeira das qualidades humanas e talvez a característica mais marcante de Mário Soares. Interrogo-me tantas vezes de que fibra são feitos aqueles que nada nem a ninguém temem, senão da mesma que os outros homens - de tendões, músculos e de sangue. De onde lhe vinha a ele a força para dizer não quando a maioria, o sistema e até a razão lhe diziam para dizer sim?

Se a coragem era o seu combustível, a liberdade o seu destino. Foi sempre por ela que lutou, contra todas as ditaduras, em todas as frentes, doesse a quem doesse. O inconformado Soares, livre pensador, não temia nem polémicas, nem confrontos nem tão pouco a derrota, e nunca virou a cara à luta, mesmo quando já não seria sensato lutar (como nas presidenciais de 2006 ou em defesa de José Sócrates como preso político). Nem à morte se entregou à primeira - deixou-a aos pés da cama desde 13 de dezembro, à espera. Não iria sem lhe dar trabalho, no seu derradeiro combate.

Com uma vida dedicada à causa pública, acumulou com toda a certeza decisões erradas (afinal, só não erra quem não faz) e a descolonização apressada a mais grave apontada pelos seus detractores. Mas a verdade é que Soares foi determinante em momentos cruciais da nossa história. Nos movimentos de oposição ao regime de Salazar, na travagem de uma escalada radical de esquerda depois da revolução, na criação de um sistema Nacional de Saúde (curiosamente numa coligação com o CDS), na adesão à Comunidade Económica Europeia, no contrapeso a um Cavaco absoluto, na defesa do humanismo à frente da contabilidade e contra a tirania cega dos números e da Troika (embora - ou talvez por isso – as duas intervenções anteriores do FMI em Portugal tenham sido debaixo da sua alçada).

Detestava o conformismo, a amorfia, o conservadorismo bafiento. Sim, ele era mesmo “fixe” e desempoeirou uma maneira de fazer política, sem medo de estar no meio do povo. Foi ele (em quem Marcelo se inspirou) que aproximou o povo dos governantes e inaugurou a política dos afectos e da proximidade. Foi ele que teve as peixeiras da Nazaré a darem-lhe abraços, feirantes a pedirem-lhe beijos repenicados e homens a puxar-lhe as bochechas. Foi ele primeiro se fotografou no meio das multidões, ainda não proliferavam as selfies. Foi ele que inaugurou um estilo novo de ser presidente, mais informal e descontraído, correndo o país de norte a sul e sentindo-lhe o pulso, dando ouvidos às pessoas reais mais do que aos relatórios formais.

Num texto imperdível que estará na edição especial da VISÃO História, integralmente dedicada a Soares, que estará nas bancas segunda-feira, o seu amigo e companheiro político José Manuel dos Santos compara-o, temperamentalmente, a Churchill. “Havia nestes dois ‘enfants terribles’ a mesma vontade, a mesma coragem, o mesmo orgulho, a mesma pontaria, o mesmo desassombro, a mesma presciência, o mesmo humor, o mesmo hedonismo, a mesma originalidade, a mesma imprevisibilidade, a mesma irreverência. Um e outro acertaram sempre no centro do alvo e falharam muitas vezes nos círculos que o rodeavam. Um e outro pareciam indomáveis, insaciáveis, invencíveis. Um e outro foram amados e odiados, às vezes pelos mesmos. Um e outro gostavam de literatura, de pintura e de política. Um e outro quiseram ser grandes romancistas e foram-no na política, fazendo dela um romance contado pela vida”, escreveu. Nada mais certeiro.

Hoje deixou-nos um homem e um político maior.

“Livre não sou mas quero a liberdade. Trago-a dentro de mim como um destino”, escreveu Miguel Torga num verso que podia ter sido feito para ele. Como dizia este poeta, não é possível “desdizer o sonho de menino / Que se afogou e flutua / Entre nenúfares de serenidade / Depois de ter a lua!”.

Soares foi uma força motriz da liberdade e ofereceu-ma em bandeja. Por tudo isto, eu e as gerações a seguir à minha, devemos-lhe um agradecimento: Obrigada Soares. Deste-nos a lua, tentaremos não deixar cair o sonho.

* Directora

IN "VISÃO"
07/01/17

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