26/01/2017

INÊS CARDOSO

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Números sem rosto

Em Portugal, 23,8% dos habitantes não conseguem manter a casa quente. Em dezembro, foram registados 224 489 beneficiários de prestações de desemprego. O número estimado de sem-abrigo ronda os cinco mil em todo o país. O fluxo de migrantes chegados à Europa através da Turquia diminuiu de mais de um milhão, em 2015, para 390 mil no ano passado. Há quase dois mil migrantes e refugiados que dormem no interior de armazéns abandonados junto a uma estação ferroviária de Belgrado, debaixo de temperaturas que chegam aos 13 graus negativos.

Os excertos são de notícias deste fim de semana. São dados sobre quem está particularmente vulnerável no período de inverno. São estatísticas, algarismos, percentagens. São sombras anónimas nos becos das cidades. São gente em trânsito à procura de futuro numa Europa de portas fechadas. Lemos, mas não lhes vemos o rosto. E é por isso que tranquilamente viramos a página, depois de breves instantes de surpresa ou compaixão.
Comovemo-nos com a fotografia de Aylan Kurdi sem vida na praia ou com o rosto ensanguentado de Omran, o menino resgatado dos escombros em Aleppo. São momentos em que a tragédia tem a dimensão exata de uma vida. Está vestida de gente. Mas passa o sobressalto e a miséria dos outros volta a ser, quase sempre, um amontoado de números. Distantes de nós. E para haver empatia, da que nos agita e nos faz agir para mudar a vida das pessoas, é preciso que sejamos capazes de lhes ver o rosto. Esse gesto simples de olhar o outro como gente é hoje de uma urgência que chega a assustar.

Há, nas redes sociais, uma discussão quase irracional sobre os voluntários que partem para Leste e vão ajudar migrantes. Com um argumento à cabeça: para quê ir para tão longe? Por que não ajudar os sem-abrigo que andam mesmo ao nosso lado? É pequenino este debate sobre onde se ajuda. Esta tentação de discutir se o meu voluntariado é melhor do que o teu.
O sofrimento não tem lugar, raça, nacionalidade ou credo. Os voluntários, estejam eles na esquina mais próxima ou no fim do Mundo, em hospitais ou na rua, em associações ou em escolas, devolvem a quem precisa de ajuda a dignidade de ser mais do que um número. Por estes dias de pessimismo em que tantos apregoam o fim do Mundo, prefiro celebrar quem põe as mãos na massa por um Mundo novo. E consegue dar um rosto aos fantasmas das estatísticas, vivam eles no Porto, em Lesbos, em Belgrado ou na porta ao lado.


IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
23/01/17

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