09/01/2017

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HOJE  NO  
"OBSERVADOR"

Da Medicina e da Igreja. 
Recordando Daniel Serrão

Um homem dividido entre a medicina e a religião: a grande mágoa foi o saneamento da Faculdade de Medicina em 75; a maior alegria ser escolhido por João Paulo II para a Academia Pontifícia para a Vida.

Daniel Serrão teve uma vida enformada pela medicina e pela religião. Como o médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe, como disse Abel Salazar (outro médico portuense), o professor de Anatomia Patológica foi muito mais do que médico – foi um pedagogo, foi um eticista, foi um homem comprometido com o catolicismo mas sempre com horizontes largos, foi um homem simples e próximo das pessoas. Para ele, “só o otimismo pode ser desmesurado”, como sublinhava na página que deixou na internet, danielserrão.com, uma forma, como ele dizia, de os netos e os tetranetos poderem vê-lo e ouvi-lo se e quando quiserem.
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Morreu num domingo de epifania, na festa católica dos Reis aos 88 anos, a menos de dois meses de completar 89. Em Outubro de 2014 tinha sido atropelado perto de casa, porque todos os dias fazia exercício – “ando pelo menos uma hora por dia”, dizia-me, quando nos encontrávamos. O que aconteceu muitas vezes porque morávamos bem perto. Nunca recuperou desse acidente.

Um homem alto, a sua presença começava por se notar fisicamente, mas rapidamente se alargava. Grande conversador, gostava de explanar as suas ideias e de procurar os melhores argumentos. Recordo-me que defendia a certa altura o cardeal francês Jean-Marie Lustiger para Papa, por ser um judeu converso e isso, segundo ele, permitiria à Igreja Católica abrir novos horizontes e resolver os problemas com o judaísmo.

Nascido em Vila Real, filho do meio de um engenheiro da então Junta Autónoma das Estradas e de uma dona de casa, concluiu o liceu em Aveiro, mas estabeleceu-se no Porto, onde viveu até ao final da vida e se dedicou à Faculdade de Medicina – de resto morou sempre perto do Hospital de S. João onde ela funciona (durante um tempo, Jorge Nuno Pinto da Costa morava no prédio em frente, bem antes de ser presidente do FC Porto). 

Doutorou-se com 19 valores, concorreu para professor de Anatomia Patológica, um cadeirão. Mobilizado para Angola, lá esteve entre 1967 e 1968. Já tinha os seis filhos e era impossível, com o vencimento de militar, prover às necessidades de uma família numerosa. A mulher, Maria do Rosário, professora de ginástica, queria acompanhá-lo e levaram assim apenas um dos filhos “por decisão dela”, escreveu, deixando os outros “à caridade dos padrinhos”. Quem os acompanhou foi Daniel Luís, que viria a morrer cedo, em 1994.

A grande mágoa foi o que chamou em livro “Um saneamento exemplar”, quando foi afastado, em 1975, da sua querida faculdade por acharem que não estava de acordo com os ideais da revolução. 

Foi reintegrado ao fim de um ano, por decisão do Conselho da Revolução com reposição integral de salários (“foi a única vez em que ganhei sem trabalhar”). Tinha que sustentar a família e montou em casa um laboratório de Anatomia Patológica e aparentemente ganhou bom dinheiro. Até porque os colegas começaram a recomendar a competência do professor e mesmo alguns que o tinham ajudado a sanear lhe mandavam doentes…

Estava sempre disponível para ir falar a qualquer conjunto de pessoas, grande ou pequeno, quase a qualquer hora do dia e da noite mesmo já depois de dobrados os 80 anos. E tinha uma grande facilidade em falar, em apresentar ideias – até há três anos tinha um espaço próprio de opinião no Porto Canal, que terminou com o acidente de 2014. Tinha as ideias claras, contava bem histórias, tocava nos pontos certos, não evitava os mais polémicos.

Assentou a sua vida em valores considerados de direita, mas sempre com uma grande sensibilidade social. Preocupava-se com as grávidas muito jovens, com os abortos sequentes, não tinha dúvidas em defender o preservativo em muitos casos, preferindo as razões médicas e sociais à razão da igreja. De resto, confessou que em jovem teve um curto período de “ateísmo militante”.

Daniel Serrão gostava de militar, gostava da luta, das suas trincheiras e dos argumentos.

“Eu agora já não sou o prof. Serrão, passei a ser o pai do Manel”, disse-me um dia, porque o filho lhe disputou, por via da televisão, a popularidade. O “Expresso” chegou a fazer uma bela reportagem, “Serrão e filho”, pegando num título de um programa humorístico da televisão. Mas também o irmão mais novo, Fernando, igualmente professor universitário (Química) foi subsecretário de Estado da Juventude e Desporto de Salazar, entre 1964 e 68. Uma família de peso político, religioso, social que ultrapassou momentos difíceis – esse irmão morreu com 52 anos em 1981 (era o padrinho do filho Manuel), uma das quatro filhas partiu ainda antes do pai.

Mas na verdade, Daniel dos Santos Pinto Serrão teve sempre um enorme reconhecimento público, até porque se dedicou a um campo novo, o da Bioética, numa altura em que se começaram a discutir as diferentes formas e possibilidades da procriação. Foi distinguido com lugares em Portugal e no estrangeiro – na Unesco e na Cúria, por exemplo – mas ter sido escolhido pelo Papa João Paulo II para membro da Academia Pontifícia para a Vida foi uma das grandes alegrias da sua vida.

* Um cidadão cheio de dignidade, um exemplo de humanidade a seguir.

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