24/12/2016

PEDRO GOMES

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Até que o mar 
me encha os olhos

As rotinas eram invariáveis. Os ciclos dos dias são medidos pelas tarefas que se sucedem, tornando inúteis os relógios. Não tinha sequer um relógio. Em toda a aldeia, apenas o chefe da aldeia, um ancião respeitado, teria um, mas não tinha a certeza.

Levantou-se, como de costume, ainda com as estrelas no céu claro de Dezembro. Tudo estava no lugar habitual. O corpo conhecia de memória os lugares das coisas. A luz era um luxo dispensável. Desceu para a cozinha e espevitou as brasas do lume, já incerto. Tomou um chá de menta, açucarado, e arrumou no bornal o pão e o queijo de cabra, antes de sair para a noite e retirar os animais do pequeno estábulo.

A caminhada seria longa até uma zona de pastagem, em que as duas vacas e três cabras – todos os bens que a família possuía – passariam o dia. Quando lá chegasse, já o sol estaria alto.

Enquanto caminhava, pensava nas estrelas que lhe traçavam o caminho. Que mundos se esconderiam atrás das estrelas e dos seus desenhos mágicos? Quem teria desenhado aqueles mundos? Será que as estrelas tinham mar? Nunca tinha saído da aldeia. O mundo que conhecia era aquele, rodeado de montanhas e de céu. O mundo chegava-lhe, às vezes, quando equipas de ajuda internacional visitavam a aldeia e lhe mostravam pedaços dum mundo que não imaginava que pudesse existir.

Na pastagem construíra uma rudimentar baliza de futebol. Jogar à bola era a sua paixão. Dormia com a velha bola, já meio-rota, debaixo da cama. Às vezes, enquanto o sono não vinha, esticava a mão para a acariciar. Enquanto os animais comiam pachorrentamente a erva sempre escassa, gostava de imaginar que estava num campo de futebol a sério e que os seus remates à improvisada baliza eram jogadas que entusiasmavam os adeptos, num outro mundo.

Depois de emocionantes jogadas, sob o olhar espantado das cabras, a fome apertava. Como sempre, o lugar para almoçar eram as ruínas dum velho estábulo. Quando se aproximou, ouviu chorar, o que o deixou em sobressalto. Não havia vivalma até perder de vista. Entrou cautelosamente. Num canto mais protegido do sol, viu uma mulher com um bebé ao colo. Parou, espantado. Na aldeia já não nasciam bebés há anos. Já nem se lembrava bem da última vez em que vira um bebé. A mulher olhou para a bola de futebol e sorriu-lhe. Ficou ali, pasmado, sem saber o que fazer ou dizer, inquieto para sair a correr.

A mulher sorriu e disse-lhe “não tenhas medo. Vem até aqui”. Ele aproximou-se, a tentar enganar a timidez. “Como te chamas”, perguntou a mulher. “Baltazar”, balbuciou o rapaz. Instintivamente, sentou-se ao lado da mulher que, apesar de já não sorrir, tinha um ar doce. “Como te chamas? Estás aqui sozinha”. A mulher respondeu-lhe: “Sou Maria. Caminhámos durante vários dias até a este lugar, em que nasceu o nosso filho. O meu marido foi à procura de comida. Somos gente simples e tudo o que temos neste mundo está aqui”. Baltazar abriu o bornal e estendeu a Maria o pão, o queijo e água, que comeram num silêncio quase cerimonioso.

“Sabes, Baltazar, o que acabaste de fazer revela grande nobreza de espírito e não está ao alcance de todos”, disse Maria a um espantado Baltazar. “Sou apenas um rapaz que guarda vacas e cabras e sonha com o mar atrás das estrelas”. “A nobreza que importa é a do coração. Tens pouco, mas não hesitaste em partilhar comigo o pão que tinhas. No meu coração e no do meu filho, és um rei generoso.” Baltazar ficou sem saber o que responder e limitou-se a olhar para o menino, que abriu os olhos, azuis como o mar que Baltazar nunca tinha visto. Levou a mão ao bornal e tirou de lá um quadrado de pano branco, imaculado. Desdobrou-o com cuidado e mostrou um pedacinho de metal, dourado e muito brilhante. Estendeu-o ao menino: “é para ti. Estou sempre a limpá-lo para ver o reflexo das estrelas. Acho que é uma bússola de sonhos. Enquanto o tiveres eu saberei onde estás”. Baltazar levantou-se e saiu. Cá fora, o dia pareceu-lhe mais bonito.

IN "AÇORIANO ORIENTAL"
22/12/16


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