16/12/2016

JOSÉ PACHECO PEREIRA

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A histeria das classificações

Existe hoje, como sinal do reducionismo e simplismo que vai crescendo na vida política portuguesa, uma verdadeira histeria das classificações. A morte de Fidel foi disso um bom exemplo, com metade do mundo a acusar quem não dizia que ele era "ditador" de ser conivente com todas as ditaduras, e a outra metade indignada com o modo como Fidel era equiparado a Pinochet e mesmo a Salazar. Depois vinha outra habitual palermice a que estamos cada vez mais habituados, a medida das ditaduras pelo número de mortos que tinham causado, uma boa maneira de atirar Fidel ao fundo, e de reabilitar a ditadura soft de Salazar. O número de mortos conta certamente para não metermos tudo no mesmo saco, e aí Hitler e Estaline são a primeira divisão, mas a contabilidade exige outros critérios, que são históricos e políticos. Por exemplo, na contabilidade de Salazar incluímos os mortos pela PIDE, ou em manifestações, mas excluímos os mortos da guerra colonial. Deixemos essa sinistra contabilidade que pouco nos diz sobre a natureza das personalidades e dos regimes, a não ser que são, regra geral pouco amigos da vida humana.

Voltemos a Fidel. Fidel foi várias coisas; um combatente contra a ditadura de Batista e a corrupção da máfia, do jogo e da prostituição que faziam de Cuba o entreposto daquilo que o moralismo americano não queria no seu território; foi, num jogo perigoso que ele jogou plenamente, "empurrado" pelos americanos para os braços geopolíticos da URSS; passou de proponente de uma via diferente de fazer a revolução, que competia com o comunismo soviético e o chinês, para um dos mais ortodoxos apoiantes da URSS, sendo um dos primeiros, com Cunhal, a apoiar a invasão da Checoslováquia; moldou, como aconteceu também em África, o sistema de partido único a uma variante de "comunismo cubano" que implicou desalojar os velhos comunistas para o exílio nos países do Pacto de Varsóvia e substituí-los pela elite que vinha da guerrilha; conheceu conspirações americanas e tentativas de assassinato contínuas e também algumas conspirações soviéticas, e acabou órfão do poder soviético quando este ruiu em 1989. O regime cubano permaneceu num país pobre, com algumas e relevantes conquistas sociais, mas encurralado no seu futuro a que apenas Obama mostrou uma alternativa, que Trump vai querer fechar.

Os americanos ajudaram, com uma política incentivada pelos exilados cubanos contra-revolucionários, a isolar Cuba e a consolidar o regime castrista, os russos davam -lhe petróleo enquanto puderam mas exigiam disciplina naquilo que eram os seus interesses mundiais. Fidel pelo meio ia sobrevivendo assente numa repressão que conheceu diferentes fases, mas que era sempre muito dura. Sim, Fidel foi um ditador, havia uma polícia política, prisões e execuções, praticamente até à véspera da sua retirada por doença, com o processo do general Arnaldo Ochoa como estertor final. Os Papas e Obama, alguns dirigentes latino-americanos que desafiaram o boicote americano e alguns países europeus que tinham relações históricas com Cuba, como Espanha, funcionaram como moderadores do regime com algum sucesso, mas Cuba não é uma democracia e os seus dirigentes são um misto de nostalgia guerrilheirista e de aparelhismo burocrático à soviética.

Porém, no exterior, as "imagens" de Cuba e de Fidel traduziam as sucessivas contradições da sua história e a fixação revolucionária em Fidel e Che, permitia a gerações de órfãos de qualquer revolução aí procurar um modelo diferente. Na verdade, numa procura de legitimidade romântica, que era simbólica, mas não histórica e muitas vezes despolitizada. Que o digam os múltiplos dirigentes da direita portuguesa que foram ao beija-mão de Fidel quando este esteve recentemente em Portugal, ou mesmo o Presidente da República que foi a Cuba para ter uma photo opportunity com Fidel. Surpreendentemente não ouvi os que agora gritam por "ditador" criticar essa viagem e o encontro.

Mas hoje só se percebe as multidões nas ruas de Cuba – e nem tudo é encenado – se tivermos em conta que, com a evolução da história, Fidel é visto cada vez mais como um nacionalista cubano e menos como um dirigente comunista. Estas mutações ocorrem na história várias vezes, e nem apagam o passado, nem deixam de ter significado no presente. Para os cubanos que conheceram a colonização espanhola, a "libertação" pelos americanos, depois a subjugação por uma aliança muito comum na América Latina entre os interesses económicos americanos e os ditadores locais, e que se sentem afrontados pelo longo embargo dos EUA, que vivem perigosamente perto do maior poder mundial, o nacionalismo é identitário. Como estamos numa Europa que acha que a identidade nacional acabou – está muito enganada –, nem sempre percebemos estes fenómenos, que a histeria das classificações coloca fora do lugar.

IN "SÁBADO"
16/12/16


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