19/11/2016

RITA RATO

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Uma vida a ser insultada

“Austeridade” está para o empobrecimento como “precariedade” está para exploração. São eufemismos que significam retrocessos, individuais e de um país inteiro, porque o emprego com direitos é, simultaneamente, uma condição e fator de progresso, justiça e estabilidade social

Insultos é o prato do dia. Ao telefone, de clientes zangados com os números da fatura e com as ameaças de corte de energia. Insultos do chefe que, apesar do título, recebe quase o mesmo que ela, mas teima em repetir que “lhe paga” para trabalhar e não para ficar em casa com o miúdo doente. Do senhorio pelas rendas em atraso. Insultos é o que sente que recebe da vida, como se fosse uma ousadia sonhar com um contrato com direitos e talvez ser efetiva num trabalho.

Sabe que faz falta todos os dias, que uma grande empresa destas não fatura sem clientes e, caso não exista quem os angarie, esclareça, informe e cobre, o negócio não funciona. Há mais de duas mãos-cheias de anos que responde e assina cartas em nome dos mesmos, e, no entanto, o recibo de ordenado mudou várias vezes ao longo destes anos: quase nada no valor do salário, mas sim no nome da empresa de trabalho temporário que lhe paga. E nos intervalos, entre insolvências por gestão danosa e conquista dos contratos leoninos por multinacionais, nem sempre recebeu a tempo e horas, nem tudo a que tinha direito.

Quando ouve falar de “responsabilidade social” das empresas, tem vontade de gritar ao mundo que uma empresa que usa as pessoas que lhe amassam os lucros sem reconhecer a sua existência humana, não tem responsabilidade de qualquer espécie… Aliás, a empresa alega que, sobre estes trabalhadores, não tem, nem quer ter, responsabilidade alguma. Daí que o nome consagrado no Código do Trabalho para empresas como esta é de “utilizadora” de trabalho temporário.

Na tabela salarial, que lhe impõe a sobrevivência como um desafio diário, o escalão máximo é de 655 euros. Já o presidente do conselho de administração da empresa utilizadora recebe 2,5 milhões/ano e, apesar disso, os lucros de 2015 fixaram-se em 913 milhões de euros. Mesmo que aumentassem todos os trabalhadores como ela para mil euros por mês, a empresa ainda teria lucros acima de 900 milhões...

Nas parangonas dos jornais, lê que isto é a “modernidade e flexibilidade do mercado de trabalho”, que é indispensável ultrapassar esta “rigidez através de reformas estruturais”. Mas sente que está hoje pior do que quando começou a trabalhar, que tem permanentemente uma espada sobre a cabeça e isso nada tem de moderno, antes faz lembrar até outros séculos quando se dormia nas fábricas.

Vê no noticiário o patronato dizer que a precariedade é uma inevitabilidade, mas tem a estranha sensação de que tudo isto não caiu do céu. Que tem a ver com sucessivas alterações à legislação laboral que transformaram a exceção em regra, generalizaram a instabilidade como o ar que se respira, ao cilindrar direitos laborais e sociais.

Do que se recorda é que, com as alterações de 2012, passou a ser muito mais fácil e mais barato despedir. Que o digam alguns colegas que já lá não estão e foram substituídos por outros com menos direitos e salário ainda mais baixo.

Não é que isso a conforte, mas sabe bem que não é caso isolado. A avaliar pelos amigos, vizinhos e familiares, a precariedade bateu à porta de muitas casas, ora em forma de contratos a termo ilegais, falsos recibos verdes, bolsas de investigação, ora de estágios curriculares e profissionais, trabalho temporário, contratos de emprego-inserção...

Tem ideia de que no nosso país existem pessoas e famílias inteiras que vivem há anos, até décadas, neste carrossel e que apenas uma pequena minoria ganha com isso. São os que vendem a ideia de que “mais vale um emprego precário que o desemprego”. Os que tudo fazem para, a partir dos conselhos de administração que dirigem, continuarem a lucrar com abuso e, em simultâneo, receberem prémios de responsabilidade social. Quem dirige assim empresas defende os seus acionistas, quem governa um país deve defender o seu povo, e isso exige enfrentar os primeiros.

“Austeridade” está para o empobrecimento como “precariedade” está para exploração. São eufemismos que significam retrocessos, individuais e de um país inteiro, porque o emprego com direitos é, simultaneamente, uma condição e fator de progresso, justiça e estabilidade social. Na lei e na vida, a um posto de trabalho permanente deve corresponder um vínculo de trabalho efetivo e este é um dos combates centrais da nossa democracia.

Ela sabe disso e está nesta luta.

* Deputada do PCP

IN "VISÃO"
13/11/16

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