01/11/2016

MARTA CAIRES

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Que me abrace 
e nunca me deixe

O telejornal e a telenovela? A noite promete ser daquelas em que é preciso adivinhar o que está a dar nas imagens tremidas da televisão.

Quando se mete de chuva, a minha mãe borda à janela e eu fico a ver a água a correr pelo quintal, mais ou menos esquecida de tudo, naquele silêncio nosso. Nós temos discussões, zangas, gritos, amuos e aquele silêncio dos dias de chuva, quando a minha mãe desliga a telefonia para não gastar as pilhas e eu penso em ser grande, em vestidos ou escrevo o nome no vidro embaciado pela minha respiração. Às vezes dá só para Lina Marta, quando é maior cabe o sobrenome.

Ao longe, no mar, ouvimos rebentar um trovão, mas a minha mãe não tem medo de trovoadas, nem de almas de outro mundo e enfia a linha na agulha como se nada fosse, como se estivesse um dia de sol. Olho de relance e não parece ouvir o assobio do vento nos eucaliptos, nem me parece preocupada com a antena, que abana em cima do terraço. O telejornal e a telenovela? A noite promete ser daquelas em que é preciso adivinhar o que está a dar nas imagens tremidas da televisão.

Debaixo do zinco do poço de lavar, o Pepe deve estar todo encolhido, que é como eu e não gosta de chuva. O tempo demora mais a passar e o vento derruba os cântaros no quintal e não me deixa ir sonhar para cima do terraço. Assim dentro de casa não vale e eu tenho a ideia que para sonhar é preciso um lugar longe da minha mãe. Agora deu-me para ter segredos e discutimos muito, a minha mãe e eu. E não sei explicar a razão, ainda há dois anos seguia-a como uma sombra, contava-lhe tudo e queria que me abraçasse à noite antes de apagar a luz.

Agora tenho medo que oiça os meus pensamentos, que descubra que acho bonitos três rapazes dos Ilhéus e que sofro porque não me ligam. Eles não sabem, nunca falamos sequer e eu até tenho vergonha de olhar. É um segredo, daqueles bem escondidos para ninguém saber. Eu sei bem que sou a gordinha do 7º-3º, que usa saias de fazenda feitas em casa, tem uma pasta amarela e não consegue saltar o pelintro nas aulas de educação física. E os rapazes não olham para miúdas assim, sobretudo os que são bonitos, populares e que jogam à bola no campo de cimento nos intervalos.

E eu gostava de ser diferente, de ter roupas que a minha mãe não pode comprar, de ser outra pessoa e não aquela que passa a tarde de chuva a olhar o quintal e usa saias feitas com os restos dos tecidos da alfaiataria do tio Humberto, que é mais barato e a minha mãe até às pilhas da telefonia faz contas. Também gostava de não discutir, de conter a revolta, de ser justa e capaz de dizer que ainda sou a mesma, que ainda tenho medo de trovoadas e do escuro e que queria muito que me abraçasse como antes, como da vez em que tive dores de ouvidos.

A chuva cai mais forte, a água escorre pelos quadrados do quintal e eu vejo as horas no relógio do crisma. Ao longe, um clarão precede a trovoada, mas está longe e a minha mãe diz que não há perigo como se conseguisse mesmo adivinhar-me os pensamentos. Será que sabe que acho bonitos uns rapazes dos Ilhéus, que me sinto triste muitas vezes, que amuo e grito quando quero apenas que me abrace e nunca, nunca me deixe?

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
30/10/16

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