22/11/2016

JOSÉ EDUARDO MARTINS

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Antes do dilúvio

ó o baixo grau de exigência de uma sociedade que não acordou para este problema permite que o Bloco de Esquerda venha atacar e taxar retroativamente a energia renovável ou que o PCP defenda a ocupação das ilhas barreiras, ambos casos das últimas semanas que ilustram um pensamento profundamente reacionário e anacrónico

O acordo de Paris entrou em vigor na última sexta-feira e esta semana começou mais uma reunião anual (COP) da Convenção das Nações Unidas sobre alterações climáticas.

É em Marraquexe, afinal, que tudo começa porque não foi de avanços e concretizações que viveu este ano de espera depois de Paris. Se quisermos o copo meio cheio, foi mais rápida do que se esperava a ratificação dos grandes poluidores. Mas se medirmos os compromissos assumidos, o copo está bastante vazio.

A comunidade científica considera, de forma consensual, que qualquer aumento da temperatura média global do planeta superior a 2 graus centígrados terá consequências dramáticas e tendencialmente irreversíveis. Ora, os compromissos de redução de emissões de gases com efeito de estufa, assumidos por mais de 150 Estados, são um resultado notável da COP21 de Paris. Mas não evitam desde já um aumento da temperatura global do planeta de 2,7 graus centígrados…

As grandes cimeiras internacionais partilham os vícios e as virtudes de todos os processos de decisão política. 
À escala nacional, a política é a arte do possível. Já quando tentamos fazer política à escala planetária, usando o consenso como método de decisão, a dificuldade de tornar possível o impossível, de fazer convergir os interesses de quase 200 Estados soberanos em torno de um denominador comum aumenta essa dificuldade e precisa mesmo do nosso estímulo, da nossa vigilância, da nossa exigência.

O método negocial escolhido, assente na publicitação dos compromissos, permite desencadear uma competição entre os Estados, entre todos os Estados e não apenas entre os Estados desenvolvidos, como acontecia com o Protocolo de Quioto assinado em 1997.

A grande mudança em Paris não foi a boa vontade da Administração Obama, limitada pela maioria do congresso republicano e por esta race to the bottom que se lhe seguiu. Foi mesmo a situação gravíssima em que se encontra a China, onde os efeitos da poluição se tornaram tão impactantes que a pressão da população sobre o poder político – sim, na China… – obrigou a uma mudança radical.

Já não é, felizmente, a União Europeia sozinha a puxar o comboio. Os três blocos de grandes poluidores parecem ter alguma vontade de agir em conjunto. A União Europeia continua a ter as tecnologias e o conhecimento necessários ao combate às alterações climáticas, em particular em matéria de tratamento de resíduos, de águas residuais, de poluição atmosférica, processos industriais, energias renováveis e transportes. A China é a maior economia mundial e tem de melhorar a sua eficácia, reduzindo as emissões e ajudando os países em vias de desenvolvimento a diminuí-las.

Mas o resultado global só se atinge com a pressão de uma opinião pública exigente. E, sobretudo, com milhões de pequenos e grandes gestos, com a mudança de paradigma.

Em Portugal, estamos em modo de descanso. Só o baixo grau de exigência de uma sociedade que não acordou para este problema permite que o Bloco de Esquerda venha atacar e taxar retroativamente a energia renovável ou que o PCP defenda a ocupação das ilhas barreiras, ambos casos das últimas semanas que ilustram um pensamento profundamente reacionário e anacrónico.

Mas, se quisermos um exemplo do nosso maior desleixo, talvez nada se compare ao caótico estado em que se encontram os transportes públicos de Lisboa. É no setor dos transportes que se concentra a maioria das nossas emissões difusas. Não é possível abandonar o uso do carro quando o transporte público funciona sem qualquer articulação, coerência e funcionalidade. Com tarifas cada vez mais caras, cada vez mais confusas e sem soluções funcionais, nunca se fará a mudança que Lisboa precisa.

Diminuir as emissões de gases com efeitos de estufa é diminuir a intensidade energética dos processos industriais e da produtividade em geral, o que torna a economia mais eficiente e logo mais competitiva. Poupar energia em geral e poupar nos combustíveis fósseis permite equilibrar a balança comercial, subir na escala tecnológica e disponibilizar recursos públicos e privados para satisfazer as necessidades coletivas.

Por cá, a crise fez parar a nossa trajetória de crescimento nas emissões. O resultado é uma desatenção quotidiana a tudo o que podíamos melhorar. Deve ser culpa do Trump.

IN "VISÃO"
18/11/16

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