Os amigos do peluche
Esta semana descobriu-se que afinal o urso polar não era amigo do cão. A Natureza tornou-se numa ficção criada a partir do sofá, em que animais, mantas e facebook se fundem numa amálgama fofinha
Esta semana o presunto entrou no grupo dos alimentos em vias de extinção e descobriu-se que afinal o urso polar não era amigo do cão. Antes já tínhamos tido o tigre e a cabra “inseparáveis na Rússia”, uma amizade que ilustrou várias das sequências de imagens que encerraram os noticiários em que somos doutrinados nas maravilhas do impossível, como o impacto zero das 35 horas no orçamento do SNS. Creio ser escusado explicar o que aconteceu à cabra e ao cão destes videos que, logo foram substituídos por outros ainda mais virais e ainda mais irreais. (Quanto ao impacto zero das 35 horas no orçamento do SNS já foi substituído pelo glorioso combate aos gordos que para mais são fascistas e explicam a vitória do Trump!)
Uma espécie de síndroma do peluche tomou conta da nossa relação com os animais e em boa medida com o mundo. Reza a lenda mediática (e note-se que as lendas mediáticas, ao contrário do que acontecia com as lendas da literatura popular, passam por verdadeiras) que os carnívoros só não são vegetarianos porque não estão devidamente esclarecidos ou alimentados a verduras. Vale a pena ver por essa internet fora as reacções dos auto-denominados viajantes (um turista é um bronco que gentrifica as cidades e destrói os paraísos naturais, já um viajante é um “maravilhoso ser humano” cheio de espiritualidade) quando num parque natural se confronta com leões caçar uma cria de babuíno ou hienas a comer uma zebra ainda vida: é como se estivessem perante um facto contra-natura!
Esta peluchização da Natureza leva ao absurdo de pretender impor comportamentos humanos aos animais: desde o gorila macho de um zoo de Dallas que foi enviado para terapia por ter atitudes sexistas, ao pinguim que chocou as redes sociais por ter agredido à bicada um outro pinguim macho que encontrou instalado no seu ninho e com a sua fêmea não faltam exemplos dessa Natureza ficcionada a partir do sofá, em que animais, mantas e facebook se fundem numa amálgama fofinha por fora mas profundamente inquietante por dentro.
Se repararmos em qualquer filme que passe em horário familiar temos invariavelmente duas ou três agressões (sexuais incluídas). Como se houvesse um Tarantino dentro de qualquer realizador que se preze, somos devida e detalhadamente elucidados sobre as diversas formas de torturar, esganar e matar. Humanos, claro. Porque dos animais não conseguimos ver o sofrimento. Veja-se, por exemplo, este texto que num site noticioso acompanhava há algum tempo um video: “Imagens recolhidas pelas televisões locais e que entretanto já circulam na Internet mostraram os cadáveres (…) deitados no chão, próximos uns dos outros. A visualização do vídeo que se segue deve ser feita com alguma cautela.” Não, não estavam a falar das vítimas da guerra Síria. Ou de um sismo. Mas sim das 323 renas fulminadas por um raio, na Noruega. O video não tem nada de especialmente impressionante sobretudo quando comparado com as dramáticas circunstâncias em que os seres humanos nos são mostrados todos os dias. Ou mesmo outros animais, caso estes não tenham pelo como é o caso dos peixes que inexplicavelmente aparecem aos saltos ou seja a morrer asfixiados sem que ninguém se impressione. A razão para tal indiferença só pode radicar naquela parte das profundezas do nosso cérebro que nos faz preferir uma rena, e sobretudo um urso de peluche, a um peixe de peluche (será que os há?).
O pior é que tudo isto não só não resulta nada de adequado na protecção das espécies selvagens – sim, a caça paga e controlada é fundamental para garantir o equilíbrio quer dos ecossistemas quer das finanças de muitas reservas naturais – como gera, aqui no nosso dia a dia, legislação tão absurda que se é levado a concluir que aqueles que a produziram nunca ousaram viajar fora de uma auto-estradas. Vejam-se os casos das matilhas de cães selvagens (muito mais perigosas que qualquer alcateia) e da proliferação de javalis. A partir de Lisboa a possibilidade de abater os cães ou de autorizar a caça aos javalis é impopular. Para os autarcas das zonas confrontadas com estes problemas, uma notícia sobre o canil municipal ou imagens de uma caçada ao javali podem ditar a desgraça nos jornais e nas urnas de voto. Mas para quem está no campo o assunto é bem diferente. Como toda a gente tem medo de ficar mal na fotografia espera-se que o tempo resolva o assunto. E assim seria caso os activistas do costume não activassem como é seu costume. Entre nós o PAN espera pelo momento em que o seu voto possa ser indispensável à construção de maiorias e consequentemente torne em propostas razoáveis o que agora olhamos como parvoíces. O procedimento não é novo e foi assim que acabámos a ter de pagar uma Feira Popular em Lisboa pois Sá Fernandes, após ter criado os maiores imbróglios à capital, acabou a impor a um António Costa disposto a tudo para ser poder não só a criação da dita feira como o assumir uma espantosa auto-derrota face à Bragaparques. No caso do PAN espero que se esse dia chegar alguém os trave no ímpeto da criação de matilhas urbanas e comunitárias mas tenho a certeza que ninguém livrará os senhorios, essa espécie de criados ao serviço dos radicais da nação, de terem de aceitar animais nas casas que alugam.
E o presunto, o que vai acontecer ao presunto com que iniciei este texto? Embora isso possa parecer a alguns o presunto não nasce dentro das embalagens. Mais: para haver presunto tem de se proceder à castração dos porcos machos (o mundo da veterinária é um manancial de discriminações!) Mas em Bruxelas a castração cirúrgica dos porcos causa angústias existenciais profundas e assim se ditou: a castração dos suínos mesmo que praticada com anestesia, é para acabar. Fica a excepção para o já inacessível Pata Negra que obviamente mais inacessível se tornará. (Estranhamente muitos dos que se indignam com a castração dos porcos e vêem nela um enorme problema defendem a castração dos cães e gatos! Em ficamos?)
Enquanto sim e não vou abastecendo-me de presunto para assistir à caça ao único animal que se pode perseguir: o contribuinte. Em Dezembro de 2015, estava a geringonça a dar os seus primeiro passos, e logo se celebrou a descrispação no Metro de Lisboa. Fez-se um acordo anunciado como nem precisando de papéis. Ao longo do ano a factura foi chegando: o Metropolitano de Lisboa gastou parte do seu orçamento a repor privilégios para os seus funcionários e respectiva oligarquia. Agora os mesmos que negociaram o tempo novo em Dezembro de 2015 e cobraram ao longo de 2016 vêm denunciar a falta de investimento no Metropolitano de Lisboa… Só é pena já não estarmos no tempo dos figos. Porque assim, entre fatias de queijo, pedaços de figo e fatias de presunto digeria-se melhor o embuste.
IN "OBSERVADOR"
20/11/16
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