12/09/2016

MARIA JOÃO AVILEZ

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Despedida renitente

Não é nada fácil voltar a sentar-me na plateia do circo, sendo uma outsider. Mas se a plateia rejubila, a corte se deslumbra e o país condescende, resta-me, profissionalmente, continuar lá sentada.

1. “E hoje o nevoeiro, levantará?” A dúvida paira, ancestral e permanente. E depois eis-nos a flutuar entre o hábito antigo daquelas neblinas e a expectativa, invariavelmente incerta, de que elas se dissipem, trazendo de volta o verão. “Mais logo, talvez …”, dizemos uns aos outros, com uma ansiedade sempre reeditada e a resignação de uma vida. Quem, dia após dia, não tenha o osso rijo e a resistência sem mácula de um corredor de fundo, que procure outra morada. Aqui adormece-se e acorda-se envolto em véu tão espesso que quase ficamos privados do olhar. Há madrugadas em que o horizonte se imobiliza numa translúcida mancha branca e manhãs de onde desapareceu o jardim, tal a espessura do manto de nevoeiro que o cobre. Cortado por vezes por uma ténue, tímida, teimosa luz, procurando passar por entre as pesadas pregas do manto.

É o Oeste e sempre foi assim. Idiossincrasia caprichosa e singular. Uma identidade própria feita de brumas e ar fresco. Neblinas matinais. Nevoeiros. Cacimba. E, do longe, chega por vezes um fiozinho de maresia, trazido do Atlântico pela humidade do cair da tarde.

Mas estou a ser injusta, este ano não foi bem assim. O verão, de tão carnudo, tão farto, tão duradoiro, tão, como dizer? glorioso, desnaturalizou-nos o Oeste: as neblinas mal pousavam, abrindo quase logo as manhãs para ferventes dias. E até as noites, oh surpresa, tiveram sempre as portas abertas para o calor que se demorava. Coisas nunca vistas por aqui. Como se este verão tivesse havido entre o dia e a noite o segredo de um misterioso compromisso.

2. Há gente, família, amigos, colegas, que me falam com um tom de voz de fim de verão. Talvez porque as rotinas reencontradas lhes ditem o fim obrigatório da “única estação” ou a despedida dela, mas não vou deixar que isso aconteça comigo. Por enquanto, não. É certo que há sinais que anunciam a fatal despedida, como quando regressamos à rotina de todo o ano, voltamos a projectos com data, ou simplesmente pensamos na vida. Ou ainda, mais simplesmente, quando nos cruzamos com os despojos do verão — toalhas sem dono, óculos de sol e de ver, chaves desconhecidas, escovas de dentes anónimas, roupa estranha. Mas isso são os restos sem importância. Arrumam-se ou, com (exaustivo) esforço, devolvem-se.

Do que falo é do verão como de uma vida que não quero que acabe e da indispensabilidade de gestos e rituais que só a ela pertencem. Como o inebriante perfume da esteva sobre os solos quentes, como o entrar no mar, como o cheiro do campo no verão, como as vibrantes tonalidades da paisagem, só intensamente reconhecíveis com a manhã já “levantada”. Como Deus, tão audível nestes mares e campos e no silêncio que os envolve. Com a vida fui aprendendo que pode haver vários silêncios e com o passar do tempo, sobre cada um deles, fui adivinhando que temos de lhes prestar a exacta atenção que eles nos reclamam.

3. José Tolentino Mendonça escrevia esta semana (Expresso) que “há silêncios à espera de serem escutados”. Sim, há (e já dei comigo muita vezes discorrendo sobre eles, e julgo que também aqui mesmo.)

Discorrendo sobre esse inconfundível silêncio feito de grato emudecimento, na praia, no areal ainda liso à minha frente, imaculado de sinais e virgem de vida, qualquer que ela seja. A não ser talvez a do Atlântico, a essa hora ainda coberto de bruma, quando a maré começa a subir devagarinho, areia acima, e o oceano ensina as suas vagas a dançar.

Divagando sobre o silêncio das tardes, que enlouquecidas de sol se eternizam na quentura espessa do ar e no cheiro acre do calor. Intérprete da natureza, caminho por ali com o tempo parado. Conheço solitariamente cada árvore e cada curva destes campos, os canaviais, o perfil da paisagem, os muros debruados a hortenses, a ponte que já não é de madeira como quando éramos pequenas, as minhas irmãs e eu; a barragem nova, os portões das casas, o rumor alto dos eucaliptos, o cheiro a malva rosa.

Retendo o silêncio sussurrado das despedidas. No ocaso do dia, quando os passos se tornam menos vigorosos, os gestos mais dolentes e já se ouve o sincopado cantar dos grilos. E a lua é um longínquo ponto brilhante que subitamente cresce e ganha forma, anunciando a noite que se organiza sobre os povoados já adormecidos.

Distingo todos estes — e outros — silêncios, ouvindo-os, mesmo quando o verão atinge o seu auge, mesmo quando há demasiada gente, mesmo quando a casa explode de movimento. Mesmo assim. Talvez porque precise deles, porventura por saber que “há silêncios à espera de serem escutados”, como dizia o poeta. Mas certamente por adivinhar lá dentro o rosto de Deus.

4. É claro que adiar assim, tão intencionalmente, tão intensamente, o fim da “única estação” me embala a preguiça do regresso e me entorpece a vontade. É que não é nada fácil voltar a sentar-me na plateia do circo, sendo uma outsider. Mas se a plateia rejubila, a corte se deslumbra e o país condescende, resta-me, muito profissionalmente, continuar lá sentada. Reconhecendo que provavelmente quem se engana sou eu e que a razão do meu desconforto só a mim pode ser imputada.

IN "OBSERVADOR"
07/09/16

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