11/08/2016

RITA GARCIA PEREIRA

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Justiça em Portugal: 
‘The twilight zone’

Os problemas da justiça colocam-se muito mais intensamente nos processos não mediáticos, ou seja, naqueles sobre os quais ninguém, excepto os visados, fala. É sobretudo nesses, que as falhas do sistema são mais evidentes e que penalizam as partes.

Bem sei que o tema escolhido é pouco propício à época de banhos e a estas temperaturas altas, mas penso que valia a pena reflectir um pouco sobre isto.

Assistimos diariamente ao circo mediático dos processos dos arguidos ainda mais mediáticos e ficamos com a sensação que todos temos um Professor Marcelo dentro de nós, apto a comentar seja o que for. A justiça mediatizada tornou-se, assim, uma espécie de telenovela que vamos acompanhando ao jantar, entre uma garfada e outra, à espera do próximo capítulo.

A verdade é que o processo (ou processos?) do Engenheiro Sócrates ou do Dr. Ricardo Salgado podem ser muito estimulantes para o desenvolvimento da arte de bem comentar mas, enquanto estivermos ocupados a discuti-los, escapa-nos o mais relevante. Muito mais importante que a sorte que qualquer deles venha a merecer, a aplicação do Direito é um problema que, mais tarde ou mais cedo, nos afectará a todos. E, com algum grau de probabilidade, apenas nessa altura os envolvidos perceberão que o nosso sistema tem uns sérios resquícios de sadismo, assemelhando-se por vezes ao famoso livro de Kafka.

Creiam-me, os problemas da nossa justiça colocam-se muito mais intensamente nos outros processos, ou seja, naqueles sobre os quais ninguém, excepto os visados, fala. É nesses, ou pelo menos é sobretudo nesses, que as falhas do sistema são mais evidentes e que penalizam as partes, independentemente da sua identidade ou posição processual, até pela falta de pressão da opinião pública.

Desde logo, a constante profusão de leis, sempre anunciadas como a panaceia de todos os males sentidos até ali, tornam o nosso regime jurídico incompreensível e incoerente. Na realidade, deparamo-nos com sucessivas mantas de retalhos cuja interpretação é impossível ao cidadão comum, o qual, relembre-se, está obrigado a cumprir o que desconhece.

Por outro lado, a falta de meios, muitas vezes disfarçada em imóveis com uma fachada de modernidade (e, já agora, que nos custam milhares e milhares de euros desnecessários...), importa morosidade, em relação à qual ora se culpam os juízes, ora se culpam os advogados, ora ambos. O que é certo é que os juízes e os advogados vão mudando mas a dita morosidade está para ficar.

Também ninguém fala nisto mas a nossa justiça é estupidamente cara, onerando os que a ela recorrem com taxas de justiça elevadas, no mesmo transe que não se aumentam os honorários dos advogados oficiosos há mais de uma década. Não obstante a nossa Constituição consagrar o direito ao acesso à Justiça, independentemente da condição social, o actual sistema concede apoio judiciário a pouco mais do que aos indigentes, tornando-a no que não pode ser, isto é, um bem transaccionável.

Como se tem visto, por exemplo na Turquia, em que uma das classes mais atacadas foram os juízes e os procuradores, a Justiça é o que separa a civilização da barbárie. Um Estado que se diz de Direito não pode assemelhar-se a um gabinete de um cartomante, em que ninguém tem a certeza da carta que vai sair. Em calhando, continuando-se neste registo, talvez o dependurado.

Não é um tema prioritário? Claro que não. Até ao dia em que o processo for seu.

* Advogada

IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
01/08/16

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