08/07/2016

MARIA JOÃO MARQUES

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Grupo de lesados da grande 
literatura masculina

Em boa verdade, as mulheres, se fossem inteligentes, tratariam de imitar as figuras femininas idealizadas pela literatura masculina. Esta mania de decidirmos por nós como somos será a nossa perdição.

Queria escrever sobre a mais recente polémica com o Facebook: empresa tão moderna, tão hipster, tão tecnológica, tão universo-aos-nossos-pés que não deixa as senhoras que lá trabalham vestirem-se de forma sexy. A propósito disso fui reler as notícias de Tim Hunt, o Nobel que acha uma maçada as mulheres cientistas: que os cientistas e as cientistas apaixonam-se e as mulheres choram quando são criticadas. Aqui, apanhei a verborreia de V.S. Naipaul sobre mulheres escritoras, vi tudo encarnado e decidi alargar o arco deste texto.

A saber: a mania que alguns egos masculinos têm de que a forma de agir, de trabalhar, de pensar, de escrever, de o que quer que seja masculina é a forma correta, o padrão, a ordem natural do mundo funcionar. E que a maneira feminina – e sim, eu voto sempre na existência de diferenças entre os sexos e nunca na igualdade intrínseca entre os xy e as xx (o que é muito diferente de assumir que há papeis, profissões, talentos predeterminados para cada sexo) – é um desvio à norma, fruto de emoções desordenadas e irracionalidades várias, sobretudo algo que as mulheres têm de corrigir se querem ser levadas a sério pelos guardiães da seriedade (também conhecidos como elementos do sexo masculino).

Este padrão masculino vai ao ponto das alucinações de Naipaul: a maneira de escrever certa e com qualidade é a masculina. O curioso é que este tipo de opiniões é levado a sério ou, pelo menos, reproduzido sem ser em tom de escárnio em jornais decentes. Quando merecia a zombaria que oferecemos a sugestões estrambólicas como a de retirar dos cursos de literatura as obras dos escritores masculinos, brancos e das potências colonizadoras. Os maluquinhos esquerdistas americanos querem extirpar os cursos de Shakespeare e Chaucer. Naipaul, porventura com o ego insuflado de que padecem os temperamentos artísticos e políticos, como  bem ilustrou Paulo Tunhas, opina que a escrita de Jane Austen ou das Brontë ou de George Eliot é ‘unequal to him’ (vá, vamos todos desmaiar ao mesmo tempo de comoção pelo tamanho do talento másculo de Naipaul).

Eu percebo que um homem goste mais do estilo literário de outro homem. Eu, (não) por acaso, tendo a apreciar mais a escrita feminina. Venero Thackeray e Evelyn Waugh e P.G. Wodehouse e Somerset Maugham, ando atrás de Julian Barnes e Peter Carey e disputo quem quer que diga que em Portugal há quem escreva melhor que o Bruno Vieira Amaral (que até sobre futebol é bom de ler). Mas, e estou pronta a constituir uma claque literária feminina, pegando por exemplo nos colegas nobelizados de Naipaul, os meus Nobel da literatura preferidos são Alice Munro e Doris Lessing. Munro – além de um talento para juntar umas palavras às outras que Naipaul invejaria se tivesse juízo – tem uma escrita, pela forma e pelos temas, que nunca viria de um homem. E o machismo da gente esclarecida dos movimentos comunistas anticoloniais que é descrito por Lessing dificilmente seria relatado no masculino.

O que V.S. Naipaul diz – sonsamente – é que o ponto de vista feminino só tem lugar na grande literatura se for apresentado (e distorcido) por um homem. Em boa verdade, as mulheres, se fossem inteligentes, tratariam de imitar as figuras femininas idealizadas pela literatura masculina. Esta mania de decidirmos por nós como somos, em vez de aceitar a recomendação masculina, será a nossa perdição.

O pior é que o padrão masculino não se fica pela literatura. Na empresa Facebook, segundo o folclore, as indumentárias são informais e os homens trabalham de calções e t-shirt. É o melhor dos mundos: os homens estão cómodos e as mulheres – como vários escritores masculinos já asseveraram – são seres assexuados incapazes de perderem uns minutos dos seus dias a escrutinar um agradável par de pernas do sexo oposto visíveis debaixo de uns calções. Já os homens, pobres almas, têm de ser protegidos deles próprios e das distrações causadas pelas minissaias e decotes femininos. Como os homens são impetuosos e não se conseguem conter – os escritores masculinos (e os extremistas islâmicos também) garantem que sim – têm de mudar as mulheres para acomodar o mundo às necessidades masculinas.

Nos laboratórios de investigação, como Tim Hunt escancarou, os contributos das mulheres são vistos (pelos ‘porcos chauvinistas’, como orgulhosamente se apresentou) como menores que os constrangimentos que a interação entre os sexos causa ao trabalho dos verdadeiros cientistas: os xy.

Acho também piada ao mito do choro feminino. É ver nas redes sociais e na comunicação social como as mulheres são imensamente mais criticadas e insultadas pelos valentes que se escondem atrás do teclado do computador; e como somos inundadas de lixo sexista constantemente. Nunca dei por ataques de choro. Já tantos homens – como Tim Hunt – quando levam como resposta a liberdade de expressão daquelas que, fazendo uso dessa mesma liberdade de expressão, ofenderam, correm a vitimizar-se e a dizerem-se mártires do feminismo fundamentalista e do politicamente correto.

E, por fim, vemos o mesmo na política. Hillary Clinton. Péssima política, deve a carreira ao marido – é proibido dizer o contrário. E com essa característica imperdoável numa mulher decente: é ambiciosa. O desejo de poder e de dinheiro está, com abundante ‘grande’ literatura masculina a argumentar para este lado, reservado aos homens e às pérfidas vamps dos romances oitocentistas.

Não interessa nada que muitos herdeiros políticos tenham falhado – Ted Kennedy, Jeb Bush,… –, que as vitórias tenham sido engendradas pela própria e que os escândalos sexuais de Bill Clinton sejam um flanco fácil de atacar. Hillary é mulher, faz discursos que são o cúmulo da sanidade numa campanha de candidatos que parecem alimentados a alucinogénios, pelo que é péssima. Já um trauliteiro com expressão verbal sub-humana, que se vê como o principal tema das eleições presidenciais (e do universo), nos discursos passa três quartos do tempo a referir as audiências que trouxe aos programas onde participa e a insultar os jornalistas que o criticaram – esse, bem, é um génio político que vai revolucionar a política mundial.

Descansem em paz, neurónios.

IN "OBSERVADOR"
06/07/16

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