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IN "VISÃO"
16/06/16
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Jogar às cartas com a vida
Entre queimar bruxas, como antigamente, e dar-lhes programas na televisão, como agora, talvez haja um meio-termo sensato para uso de uma sociedade decente
O leitor não vai acreditar nesta: um daqueles programas televisivos
em que uma bruxa residente dá consultas com um baralho de cartas recebeu
um telefonema de uma espectadora que pretendia aconselhar-se acerca da
situação de violência doméstica que vive há 40 anos. A bruxa baralhou as
cartas, dispô-las em cima da mesa e recomendou à senhora que não
discutisse com o marido e o mimasse. Incrível. Para grande surpresa de
toda a gente, aquele método não se revelou eficaz na produção de bons
conselhos.
Em defesa do Tarot, devo dizer que a culpa não foi das
cartas. A bruxa baralhou--as de forma exemplar e depois justificou sem
margem para dúvidas o conselho: saiu a carta da Imperatriz e a da
Temperança, o que indica claramente que o marido da espectadora não tem
amantes e que, além disso, não convém discutir com ele. As redes sociais
é que não se comoveram com a explicação e, abandonando a sua habitual
calma, por uma vez indignaram-se. Foi então que o caso chegou aos
jornais. Antigamente, os jornais relatavam o que acontecia no mundo;
hoje, relatam o que acontece nas redes sociais. É assim que agora vamos
sabendo o que se passa: as redes sociais fazem uma primeira triagem,
distinguindo os factos susceptíveis de proporcionar boas indignações dos
que não irritam ninguém, e depois os jornais relatam com objectividade e
isenção a gritaria que se gerou.
Na minha qualidade de pessoa
de antigamente, considero que condenar este conselho específico de um
programa de bruxaria equivale a lamentar que uma pessoa cuspa para o
chão quando se encontra numa pocilga. Como é que eu hei-de explicar o
meu raciocínio extravagante? Digamos que eu não me surpreendo quando um
baralho de cartas dá maus conselhos. Assim como também não espero que
búzios, borras de café e entranhas de galinha produzam pensamento
moderno e sensato.
Na minha bizarra opinião, todos os conselhos
provenientes do lançamento de cartões rectangulares com bonecos
desenhados são inadmissíveis. Os espectadores daquele programa pedem
opiniões sobre a sua saúde, a vida profissional e a vida sentimental.
Estou firmemente convencido de que nem a bruxa nem os bonecos têm
competência para se pronunciar sobre qualquer desses assuntos. “Devo
mudar de emprego?” Resposta certa: “Não sei.” “O meu marido tem uma
amante?” Resposta certa: “Não sei.” “Este caroço que me apareceu debaixo
do braço é grave?” Resposta certa: “Não sei.” E assim sucessivamente.
Ora, entre queimar bruxas, como antigamente, e dar-lhes programas na
televisão, como agora, talvez haja um meio-termo sensato para uso de uma
sociedade decente. Pode ser que os jornais se lembrem de debater a
questão. Mas só quando as redes sociais acharem que é a altura certa.
IN "VISÃO"
16/06/16
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