08/06/2016

MARINE ANTUNES

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Obrigada, ciência! 
Mas nunca me teria safado 
sem as minhas duas irmãs


A verdade é que, mesmo de forma tão diferente, as minhas duas irmãs não permitiram que o cancro fosse só meu

Esta semana celebrou-se o Dia dos Irmãos e isso fez-me relembrar uma das máximas da minha vida: nunca me teria safado neste mundo sem as minhas duas irmãs. Precisei delas antes, durante e depois do cancro, e vou precisar sempre que estiver aflita, sempre que estiver feliz e a querer estar mais feliz ainda, e sempre que bater com o carro (para elas me encobrirem). Adoro os meus pais, adoro-os mesmo, mas nunca os teria aturado sem estas duas.

Ter o cancro sem as minhas irmãs significaria não ter achado graça a nada e é sempre melhor quando sabemos que vamos fazer falta a muita gente – ou quando simplesmente não queremos que fiquem com as nossas roupas. As minhas irmãs reagiram de diferentes maneiras quando souberam que a mais nova tinha cancro. A irmã mais velha (tem mais oito anos do que eu) decidiu agir como uma segunda mãe.

Tratou de mim com ainda mais cuidado, auxiliou a nossa mãe em tudo, dormiu no hospital comigo, fez o jantar à outra (que, por acaso, cozinha melhor do que ela), comprou-me as minhas boinas, ralhou-me quando tinha de ralhar ou só quando lhe apetecia. Já a irmã do meio tratou de manter a normalidade dos meus dias. Garantiu que continuávamos idiotas, a brincar e a guerrear pelas mesmas coisas e transformou o meu cancro numa festa, desvalorizando as dificuldades e exaltando a boa vida de um doente oncológico (ela fazia-me acreditar que tinha inveja de não dormir num quarto tão cool como o meu, com campainha à disposição para qualquer capricho e enfermeiros giros a desfilarem no corredor).

A verdade é que, mesmo de forma tão diferente, as minhas duas irmãs não permitiram que o cancro fosse só meu (ou talvez sejam só umas invejosas, porque quando uma de nós tem uma coisa, as outras também querem) e tornaram aquela fase da minha vida na nossa fase. Decidimos, apesar de nunca ter sido falado ou acordado porque aconteceu naturalmente, passarmos as três juntas por isto, com risos, gritos, lágrimas, como equipa que sempre fomos. Elas foram de tal forma intrometidas que o dia mais feliz da minha vida, aliás, das nossas vidas, foi vivido no aniversário da do meio. E eis a história mais fantástica e inacreditável da minha vida.

Ela fazia uns gloriosos 18 anos de idade e nós queríamos festejar esse marco, mas nesse mesmo dia fui fazer o exame mais importante de sempre (mais especificamente, uma tomografia por emissão de positrões – PET). Com este exame iríamos saber se entrava finalmente em remissão da doença ou se ainda não estava livre do cancro.

23 de julho. Fui fazer o exame na companhia da minha mãe e o nosso plano era despacharmos aquilo, ouvirmos a boa notícia e irmos para casa apagar as velas e cantar os parabéns, em três tons diferentes. Fui para o hospital com a convicção inabalável de que estava bem. Não era apenas vontade de estar bem, eu sabia que estava bem. Sabem quando temos a certeza de algo, mesmo que nos digam o contrário? Era esse o meu sentimento.

Mas a médica, depois de realizar a PET, veio com aquela cara de médica dizer-me que teriam de analisar melhor o meu exame porque me tinham descoberto algo na bexiga. Nem a ouvi até ao fim e pirei-me dali. Corri, corri, corri até chegar ao meu transporte, a ambulância que me levaria para casa, e só me lembro de já lá estar dentro, com a minha mãe, a chorar que nem uma perdida e a ralhar ao meu Deus por permitir que me estivessem a dizer uma merda daquelas. Como poderia permitir que me dissessem uma mentira tão grande? Como poderia ser negada a minha certeza? Com a minha assertividade de sempre, disse à minha mãe, do alto dos meus 14 anos, que aquilo simplesmente estava errado. Eu estava bem. E a minha mãe concordou comigo.

Foi então que concordámos fazer algo aparentemente impossível que só pode ser sugerido por uma mãe que ama muito as três filhas:

“Quando chegarmos a casa, vamos dizer que os resultados ainda não saíram. Não contamos nada destas novas suspeitas. Hoje há um aniversário em casa, lembras-te? E nós vamos festejá-lo. Amanhã logo se vê.” Limpámos as lágrimas, ignorámos o medo e cantámos os parabéns com maior convicção ainda, porque tínhamos decidido que aquele seria um dia de festa.

No meio do bolo, o telefone de casa tocou. E eu corri a atender porque sabia que aquela chamada era para mim: “Marine, daqui fala a tua médica. Saíste tão transtornada daqui que fui imediatamente rever o teu exame com outros colegas. Desculpa ter-te assustado, afinal, aquilo que tinhas na tua bexiga era apenas urina. Está tudo bem. Estás em remissão, Marine, estás curad...”

Não a ouvi, novamente, até ao fim. Caí no chão a chorar. Estava bem. Estava limpa. Estava sem cancro. A minha mãe chorava, agarrada a mim, as outras choravam por solidariedade e por nervos, mas ainda sem entenderem por que raio estávamos todos a chorar. Chorámos todos com histerismos e emoção, chorámos de alívio e de tremenda gratidão, e eu só conseguia dizer, “já acabou, já acabou, já acabou”.

Ninguém dormiu nessa noite. Brincámos, rimos, telefonámos a meio mundo – no dia 23 de julho, celebrámos a vida duas vezes, a minha e a da minha irmã do meio. Anos mais tarde, a nossa mais velha fez questão de casar nesse mesmo dia. E assim, as três juntas temos um dia que é tão nosso, só nosso, porque somos uma equipa para sempre.

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02/06/16

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