A Saturnália portuguesa
Indiferentes à sucessiva entrega de Portugal às fatias aos angolanos e aos chineses e mesmo aos espanhóis, guardamos a nossa fanfarronice para a bola salvífica.
A Pátria, que estava enfunada como um navio ao vento do largo, agora
está de velas murchas pelo “empate”. Ronaldo disse umas gabarolices,
nada de novo no contínuo linguajar de presidentes dos clubes,
treinadores, jogadores, e recebeu a resposta que merecia do treinador
islandês: "Queriam ganhar? Jogassem melhor". Parece-me sensato. Mas a sensatez tem pequeno papel nestes dias.
Parece
que até no exame de filosofia se falou de futebol e do “igualitarismo”.
Não vi o ponto, à data em que escrevo, mas conheço bem demais a questão
que periodicamente os intelectuais do futebol, que há muitos, trazem
para justificar tudo: o futebol iguala os ricos e os pobres na mesma
Saturnália emocional e irracional, uma espécie de espasmo, para não lhe
chamar outra coisa, colectivo, que revela a “alma” de um povo que, de um
modo geral, está dividido e desalmado.
A sucessão de imagens
fabulosas dos políticos portugueses a prestarem honras a esta nova forma
de altar da Pátria, a bola, é o sinal de um unanimismo desejado que,
como é evidente, a democracia não contém no plano político. Deixou de
haver Benfica, Sporting, Porto, somos todos da Selecção, esse local
ideal da ausência do conflito, da paz perpétua. Mas que fabuloso retrato
de Marcelo e Costa, na encarnação do Senhor Feliz e do Senhor Contente,
nos autógrafos ao Ronaldo e de Passos Coelho zangado, firme e hirto
numa sucessão de fotografias que o PSD colocou no seu site e que é um
dos melhores espelhos do “estado” do partido. Nelas, na sede do PSD, em
sucessão hierárquica de importância medida pela distância de cada mesa e
cadeira ao Poder, sem qualquer espontaneidade, numa postura
norte-coreana, destoa apenas um homem sem cachecol, o verdadeiro líder,
Passos Coelho fardado de Primeiro-ministro com a célebre bandeirinha à
lapela. Pôr cachecol tornava-o igual aos outros, tirava-o do pedestal.
Ao ver estas fotos, apeteceu-me gritar “volta Lopes, estás perdoado!” Se
me pedirem que descreva o Portugal político destes dias, aqui está ele
em todo o seu esplendor – Quem lhe tirou o la minute foi o futebol.
Mas
pobre retrato este, dos retratados e do fotógrafo invisível. No pacote
vêm todas as ambiguidades da nossa vida colectiva, povo, media e
política, todos demasiado iguais na objectiva futebolística, mistura de
oportunismo, ou seja, escolha de oportunidades que não se podem falhar,
cegueira, apologia da irracionalidade numa sociedade que tanta falta
tem de racionalidade, brutalidade, e alarvidade, desculpa pela
violência, encolher de ombros perante a alternância bipolar entre a
gabarolice antes e a depressão depois, como se o destino de tudo
dependesse do sucesso do futebol, para Portugal ser grande de novo.
Indiferentes
à sucessiva entrega de Portugal às fatias aos angolanos e aos chineses e
mesmo aos espanhóis, fazendo de conta que não vêem que já somos
governados por gente em que não votamos e que não controlamos e que não
responde perante os portugueses, guardamos a nossa fanfarronice para a
bola salvífica. Não somos únicos nesta atitude, mas com os males dos
outros eu cuido, mas não agora. Agora é com os nossos males escondidos
atrás dos urros, da cerveja, do folclore do vestuário, dos vikings de
cornos de borracha.
A ideia peregrina e até um pouco salazarista,
embora com expressão também à esquerda, de que na “festa” se encontram
os “desiguais”, está bem para a gentry inglesa ou para os
vários Lampedusa do sul ou para a nossa nobreza cavalar que bebe uns
copos entre cavaleiros tauromáquicos de nome velho (ou que parece velho,
como me dizia o meu avô) e os campinos e os forcados, mas é puramente
ilusória, ou melhor, intencionalmente ilusória.
O que é “desigual”
continua desigual. E basta olhar para as imagens das gentes à saída ou à
entrada dos jogos, para ver as tias e os betos e o mecânico de
automóveis e a caixa de supermercado, mesmo quando todos estão de
cachecol, cara pintada, e de chapéus com cornos. A desigualdade é uma
coisa tramada, cola-se à pele e não há maneira de a tirar, a não ser
“igualando”.
Por seu lado, a esquerda, a começar por certa
esquerda radical, como já não encontra o povo em lado nenhum e já não há
operários, nem camponeses, nem soldados nem marinheiros, vai
encontrá-lo na turba futebolística, hooligans incluídos. Ainda
se fosse a esquerda inglesa, vá que não vá, porque a classe operária
inglesa ainda permanece com alguma identidade, fala diferente, bebe
diferente, veste diferente e o futebol tornou-se uma coisa muito deles.
Não era na sua origem, mas tornou-se. Mas fora de Inglaterra, há muito
tempo que o povo é muito diferente do povo dos livros. Aliás, o dos
livros também não era bem assim.
Não quero, nem muito menos podia
se quisesse, tornar diferente o mundo do futebol. Mas ao menos que
paguem o preço da crítica, aqueles para quem a crítica ainda tem algum
papel. Não são muitos, nem adianta muito, mas pelo menos que se saiba e
se diga, que os media deixam nestes dias de ser media
para serem uma sucursal do Entretenimento Inc., e que participam
alegremente numa operação de dopagem colectiva que empobrece o país. O
exagero absoluto que já tem pouco a ver com o que se passa no jogo, para
se tornar reality show permanente, tão aditivo como um químico.
George
Orwell, que percebia destas coisas, escreveu: “Futebol, cerveja e acima
de tudo o jogo, enchiam o horizonte das suas mentes. Mantê-los
controlados não era difícil”. Nestes dias de bola, percebe-se que não é.
IN "PÚBLICO"
18/06/16
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