22/06/2016

FELISBELA LOPES

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A geringonça 2.0

Nos 100 dias que conta na Presidência da República, Marcelo Rebelo de Sousa fez uma revolução. Dessacralizou o cargo, tornou o centro um lugar nómada, visitou alguns palcos internacionais e transformou-se num actante fundamental para a estabilidade do Governo português. Com Marcelo em Belém, podemos falar de uma geringonça 2.0, ou seja, de uma outra ideia da atual solução governativa. Mais robusta e, talvez, mais perene. Mas tudo pode mudar de um momento para o outro. Ou não.

Iniciei, no passado dia 10 de março, uma análise (quantitativa) da mediatização da atividade do presidente da República por parte dos quatro jornais diários portugueses (JN, DN, CM e Público). Cedo imaginei que fosse acumulando vários artigos jornalísticos, mas nunca pensei que a atenção da Imprensa diária fosse tão intensa. Os jornalistas gostam de Marcelo e Marcelo não vive sem os jornalistas. E foi precisamente essa dualidade estrutural entre Belém e as redações que provocou uma reformatação do cargo e uma consolidação do modo encontrado por António Costa para formar Governo.

Hoje, a imagem bolorenta de um presidente da República preso num inexplicável protocolo parece ter ficado "in illo tempore", em tempos muito remotos, aos quais ninguém tem vontade de regressar. Sabemos agora que é possível ter na Presidência um homem (ou, no futuro, uma mulher) que sai de um evento conduzindo o seu próprio carro ou que vai à praia de manhã para um mergulho, deixando os seguranças em casa. Num Portugal tão dado a formalismos, sabe bem ver o mais alto magistrado da nação dispensando mordomias quando as circunstâncias o permitam. Também é de salientar a política de proximidade e o registo emocional que Marcelo Rebelo de Sousa fez entrar na Presidência da República Portuguesa. Há uma razão sensível presente em cada intervenção política do presidente e um laço social que o seu trabalho foi atando ao longo destes 100 dias. E os portugueses, os de cá e os da diáspora, têm apreciado. Muito.

Deslocalizando em permanência o que se convencionou ser o centro, Marcelo foi iluminando inesperados territórios (espera-se que intensifique essa ação). Isso aconteceu porque o PR carrega consigo uma enorme centralidade, poder-se-á argumentar. Mas também é justo acrescentar-se que tem havido uma preocupação em fazer transportar para esses lugares rituais que pareciam fossilizados em Lisboa. Como as reuniões semanais entre o presidente da República e o primeiro-ministro que, nos últimos quatro meses, já aconteceram no Norte e no Alentejo. Em simultâneo com a valorização do país que somos, houve também o cuidado de posicionar o PR nos palcos internacionais, contando-se, neste intervalo de tempo, quase uma dezena de viagens ao estrangeiro.

Oriundo de uma família política de Direita, Marcelo confrontou-se de imediato com um enorme desafio: escolher o modo de se relacionar com um Governo de Esquerda. É verdade que o facto de Passos Coelho nunca ter cultivado uma boa relação com o "doutor Rebelo de Sousa" facilitava a escolha de uma coabitação colaborante entre PR e o atual Executivo, mas não determinava tudo. 

Beneficiando da circunstância de em S. Bento encontrar um primeiro-ministro com um perfil não muito distanciado do seu (ambos são muito hábeis em complexas movimentações no xadrez político, ambos cultivam uma permanente proximidade com o eleitorado, ambos sabem que dentro do seu partido estão muitos adversários e que fora dele encontram fieis aliados...), Marcelo tem sido uma peça importante para a estabilidade política. Neste tempo, o PR ajudou a fortalecer a solução governativa, sendo hoje um ator imprescindível para a respetiva sustentabilidade.

Com Marcelo em Belém, deu-se corpo a uma geringonça 2.0. Que, como diz Costa, funciona. Porque vai sendo oleada pelos partidos de Esquerda e encontra um caminho que vai sendo aberto pelo PR. É claro que o futuro pode inverter (rapidamente) esse percurso. Marcelo Rebelo de Sousa é imprevisível, todos sabem. E a geringonça 2.0 pode empenar e colocar em causa o Governo ou pode também toldar a popularidade de Marcelo. Em Belém e em S. Bento, há quem calcule os efeitos de uma geringonça empenada, principalmente quando se alcança o estatuto de 2.0.

* PROF. ASSOCIADA COM AGREGAÇÃO DA UMINHO

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
17/06/16


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