12/06/2016

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ESTA SEMANA NA 
"VISÃO"

Os ficheiros secretos da medicina legal

Análises genéticas, testes de paternidade, deteção de droga e álcool, pareceres em casos de violência doméstica ou abuso sexual, e, claro, autópsias. No Instituto de Medicina Legal resolvem-se crimes, estabelecem--se indemnizações, encontram-se vítimas e culpados. Bem-vindo aos seus bastidores 
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Ver com os próprios olhos
Não há como negar. Apesar de representar apenas 10 por cento do trabalho, as autópsias são o aspeto mais visível da atividade no Instituto Nacional de Medicina Legal, com sede em Coimbra. Acontecem sempre que há um cadáver e uma ordem do Ministério Público.

O 'Caso da Chaminé'
Uma mulher aparece morta no Alentejo, estrangulada. A casa onde vivia está remexida, como se tivesse havido um roubo. A Polícia Judiciária (PJ) desconfia: o assalto parece ensaiado. A suspeita principal recai sobre o marido, chamemos-lhe Joaquim, emigrante em França. Joaquim passa a ser seguido. Tem uma relação extraconjugal, um filho desta mesma e um diferendo por causa de uma casa. É posto sob escuta e a polícia desconfia de um carregamento que ele, vendedor de chaminés em cimento, envia para Portugal, num camião TIR. Quando a carga chega ao destino, a polícia manda desmanchar a chaminé e, lá dentro, entre os blocos de cimento, está um corpo.

O primeiro desafio foi identificar o corpo encarcerado no cimento. Primeiro saltaram à vista as tatuagens, que são sempre uma boa pista. A seguir, a autópsia, onde se procura todo o tipo de informação que possa dar pistas acerca do homicídio. Percebeu-se que o homem tinha morrido com um tiro na nuca. A análise ao conteúdo do estômago permitiu perceber que tinha comido moelas antes de morrer. Esta informação ajudou a polícia a associar o corpo a um visitante, estrangeiro, que tinha passado pela aldeia alentejana, onde tinha sido encontrado o corpo da senhora. O homem ia disfarçado, com peruca e bigode, mas o menu pedido na tasca local coincidia com o descrito na autópsia.

A palavra autópsia tem origem no grego e significa ver com os próprios olhos. “Sentimos, cheiramos, palpamos, medimos, com detalhe e rigor. Temos de estar preparados para responder a qualquer tipo de pergunta que possa vir da investigação”, explica João Pinheiro, médico, especialista em Medicina Legal, e vice-presidente do Instituto Nacional de Medicina Legal (INML).
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Além deste exame, a olho nu, foi preciso ainda fazer um estudo genético ao morto para perceber se havia uma relação entre o mesmo e o carro da mulher assassinada, encontrado ao abandono em Madrid.
E havia. O ADN do homem, encontrado dentro da chaminé, foi detetado no interior do veículo. Estavam descobertas todas as peças do puzzle: Joaquim contratou um assassino profissional para matar a mulher. E a seguir, depois do trabalho feito, eliminou-o, com um tiro na nuca.

Este caso, que nas aulas João Pinheiro apresenta como 'o caso da chaminé', é exemplar, o que se pode chamar de um 'caso de estudo': envolve várias polícias – de França, Portugal e Espanha –, diferentes tipos de análises, a anatomia patológica e os testes genéticos, e um crime intrincado, mas que, mesmo assim, resultou na condenação do assassino.

Sentença: o marido foi considerado culpado, condenado a 25 anos de prisão.

A arma do crime
Uma mulher, grávida de sete meses, foi encontrada morta em casa, com vários golpes em todo o corpo, em particular no abdómen. Apesar da tentativa da equipa do INEM, que tentou fazer o parto, não é possível salvar o bebé. O corpo da mulher segue para o INML. Um dia depois, o ex-companheiro, que também tinha ferido os pais da vítima e era o principal suspeito, apareceu enforcado, a 800 metros do local do crime. Ao seu lado, uma catana e uma faca de cozinha.

Neste caso, era importante perceber qual a causa de morte e determinar se a arma do crime coincidia com a faca e a catana encontradas ao lado do corpo do ex-companheiro. Uma autópsia nunca é um ato isolado. Há sempre dois especialistas na sala, que lembra mais um talho do que um bloco cirúrgico. Até o cheiro se assemelha. A parede está forrada a azulejos e o chão é feito de uma grade, por onde escorrem os líquidos corporais. O primeiro passo desta 'valsa' é medir, descrever, desde a cor do cabelo aos olhos, por exemplo, e os sinais de morte, como a rigidez. Depois vem a primeira incisão, do pescoço à púbis, cortam-se as costelas, retiram-se os órgãos, colhe-se o sangue, analisa-se o conteúdo do estômago. Colhem-se amostras, que depois serão cortadas em lâminas fininhas, do fígado, rim, coração. A seguir, abre-se o crânio (“não gostamos de olhar para a cara dos mortos”, confessa João Pinheiro), retira-se o cérebro, que também será cortado em lâminas, e preenche-se o espaço com algodão, para que a cabeça mantenha a firmeza. “A maior parte das causas de morte estão na cabeça”, nota o patologista. No final, depois de tudo cosido, vem o embelezamento: lavar, limpar, cortar a barba, as unhas.

“Mesmo em histórias que parecem estar resolvidas, tem de se fazer autópsia”, reforça João Pinheiro. Neste caso, em que o assassino se suicidou, foi possível afirmar, sem sombra de dúvida, que “as lesões traumáticas do pescoço, abdómen e membro superior esquerdo causaram a morte”, lê-se no relatório. Mas em cinco a sete por cento das situações o exame pode ser inconclusivo. “Não existe 100% de sucesso”, sublinha o médico. Os patologistas notaram ainda que o predomínio das lesões no abdómen sugerem uma deliberada intenção de ferir o feto. Também ficou claro o tipo de arma envolvida no crime. Caso encerrado.

Antropologia forense
O que dizem os ossos
Por vezes, quando o corpo é encontrado, já só sobram os ossos e aí entra em ação Gonçalo Carnim, o especialista da delegação de Coimbra do INML, que tem colaborado, por exemplo, na identificação das vítimas do franquismo, em Espanha

Queda ou empurrão
No sopé de uma zona escarpada, descobre-se um esqueleto. Considerando a zona em que foram encontrados os restos esqueléticos e consultadas as listas de desaparecidos a P.J., julga tratar-se de Maria. A vítima era casada com Hélio e a P.J. suspeita que ele a terá matado. Este parece ser mais um caso de violência doméstica mas o homem afirma que não teve intenção de matar a mulher, que fez tudo para a salvar e que ocultou o seu cadáver por ter medo que lhe atribuíssem a culpa do sucedido.
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Este é um caso para Gonçalo Carnim, antropólogo forense, que procura as pistas que os ossos escondem. “É necessário realizar a análise tafonómica, isto é, perceber o que aconteceu àquele corpo desde o momento em que é cadáver até ao momento em que é encontrado: quanto tempo terá decorrido desde a morte, se o cadáver sofreu ação de animais necrófagos, etc.”, explica. É preciso avaliar se algumas das fraturas observadas resultam da ação do agressor sobre o corpo da vítima ou da queda do corpo pela encosta da ravina. De seguida, “a análise antropológica teve que determinar se as lesões esqueléticas observadas estão de acordo com a história contada pelo marido, que alega, por exemplo, que a vítima terá caído de costas, desequilibrando-se, enquanto o agredia. Só que são observadas fraturas ósseas na região da face que, além de não serem compatíveis com uma queda de costas, sugerem uma agressão direta e muito violenta. A história do marido era falsa.

Testes de ADN
Quase 100% de certeza
O estudo dos genes deu um salto de gigante nos últimos anos, sendo decisivo na identificação de criminosos. Está sob alçada do INML a base de dados de perfis genéticos de criminosos, para a qual começaram a ser recolhidos elementos em fevereiro de 2010.

A falsa vítima
Um Fiat Uno é encontrado, abandonado, depois de ter estado envolvido num acidente. Quando se identifica o dono do veículo, este alega que tinha sido vítima de um roubo e que o carro já não estava em sua posse quando bateu. A Polícia Judiciária não acreditou nesta versão e pediu ajuda à Medicina Legal, enviando para análise dois pedaços de tecido do airbag.

O material chega num saco da polícia. Chamam-lhe police evidence bag e está fechado com fita gomada e agrafos. Lá dentro, as amostras do airbag do condutor e do passageiro. Num envelope, vai uma escova com colheita de saliva do dono do Fiat Uno. Do airbag extrai-se o ADN, recorrendo a uma técnica muito semelhante à que se usa nos laboratórios de investigação – o PCR – que funciona como uma espécie de amplificação dos genes, para posterior descodificação. Pela comparação do material genético encontrado no airbag e recolhido na zaragatoa à saliva do dono do carro, percebeu-se que se tratava da mesma pessoa. Conclusão: o dono do carro ainda ia ao volante quando o airbag disparou, ou seja, fora ele o culpado pelo acidente.

Em vinte anos, Maria João Porto, responsável pela área de genética no Instituto de Medicina Legal de Coimbra, assistiu a uma enorme evolução. No seu laboratório, metade do trabalho está relacionado com os testes de paternidade. Também acontece ser requisitado para identificar restos de cadáveres, amostras de esperma, num contexto de crime sexual, ou ainda na identificação de suspeitos noutro tipo de crimes. Quando começou, os testes baseavam-se na identificação do grupo sanguíneo ou das proteínas encontradas no plasma. Os resultados dos testes de paternidade traduziam-se em 'pouco provável', 'algo provável', e por aí fora. “A escala acabava em 99,73% de probabilidade. Hoje, conseguimos chegar a 99, 999999% de certeza”, compara Maria João Porto. Ainda assim, a decisão, de atribuir a paternidade ou a autoria de um crime, continua a ser do juiz. “A prova do ADN é muito poderosa, mas não é a única”, sublinha a especialista. Contudo, a especialista reconhece que “no tribunal, a perícia é cada vez mais importante”.
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É também a partir dos testes feitos no laboratório de genética que se tem vindo a construir, desde 2010, a base de dados de perfis de criminosos. Além destes, também se faz identificação do genoma de cadáveres, para cruzar com o de pessoas desaparecidas, de amostras de suspeitos envolvidos em crimes ou ainda dos profissionais dos laboratórios de genética do Instituto. Todos estes dados ficam armazenados, sob a guarda do Instituto de Medicina Legal. No entanto, o processo está dependente de uma decisão judicial, o que torna o processo moroso e complicado.

O presidente do INML, o juiz desembargador Francisco Brízida Martins, espera que a alteração legislativa que está prevista para breve venha a simplificar a aquisição destes dados, permitindo incluir mais perfis ao diminuir os pressupostos e requisitos. “O legislador teve uma atitude cautelosa,devido à relutância inicial à constituição desta base de dados”, justifica. No final do ano passado havia já mais de sete mil registos. “Tem vindo a crescer, mas pretendia-se que tivesse mais elementos. Quanto maior, mais possibilidades temos de que venha a ser útil [na resolução de crimes]”, afirma o presidente.

“Continua a haver casos em que não é possível chegar a uma conclusão (o nosso trabalho não é como no CSI), mas são cada vez menos. A evolução das técnicas tem-nos permitido identificar amostras com menos quantidade de material”, diz Maria João Porto. O ideal é que a amostra seja uma zaragatoa da boca, carregada de ADN. Mas há casos em que tudo o que sobra é uma amostra de osso ou um cabelo. Quando há um transplante de medula óssea, o cabelo acaba mesmo por ser a fonte mais segura já que preserva o ADN original, enquanto o sangue, por exemplo, expressa os genes do dador de medula, o que deturpa os resultados.

Análises As perícias com material genético têm cada vez menos margem de erro e um maior peso como prova em tribunal

Quanto vale? 
Em Coimbra, além dos laboratórios, também há salas de consulta. São aqui feitas as perícias em processos de maus tratos, violência conjugal, abuso de menores, violações. Também são avaliados os graus de incapacidade em casos de acidente, para posterior cálculo de indemnização

Violação
Uma mulher de 38 anos, desempregada, refere ter sido violada pelo ex-marido. O filho, de onze anos, que assistiu a parte da cena, até o pai se ter fechado no quarto com a mãe, chamou a GNR que ainda conseguiu deter o homem. A mulher dirigiu-se ao Instituto, sem tomar banho e levando a roupa interior que usava na altura. O casal está em processo de divórcio, com uma acusação de violência doméstica, por parte da mulher.

Na consulta, a senhora refere ser vítima de agressões sexuais e maus tratos há vinte anos, sem nunca ter recorrido a assistência médica. Durante o exame, a vítima mostra-se cooperante. Tem equimoses na cara e no braço. Na cadeira ginecológica, a região ano-genital é examinada ao pormenor, com descrição das dimensão das lesões, a coloração. Foram detetados espermatozoides nas cuecas, na vulva e na coxa. Estas amostras foram comparadas, no laboratório, para identificação do alegado violador. Conclusão: as lesões da região genital são compatíveis com a descrição da agressão feita pela vítima.
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Na área clínica, onde trabalham psicólogos, psiquiatras ou ginecologistas, por exemplo, trata-se dos vivos. Nem todos são funcionários dos Instituto, foram antes contratados para questões específicas. Dão-se pareceres sobre questões relacionadas com o direito do trabalho, penal ou cível.

São os peritos do Instituto que estabelecem os graus de incapacidade em caso de acidentes de trabalho, por exemplo, que depois o tribunal converte em dinheiro. Uma avaliação feita caso a caso. Por exemplo, para uma bailarina, perder parte da mobilidade num braço, terá mais impacto do que para um contabilista. E é este o papel dos peritos, avaliar o dano, tendo em conta o estilo de vida da pessoa em questão.

Nos últimos anos, tem aumentado significativamente o recurso a pareceres em casos de determinação do poder parental.

* Excelente descrição dum mundo tão longe e tão perto ao mesmo tempo.


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