20/06/2016

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Senso d'hoje

EUGÉNIA TOMAZ
FISIOTERAPEUTA, 
ARTISTA PLÁSTICA

SUPRANUMERÁRIA 
DO OPOUS DEI
"Os membros da Opus Dei são privados do seu sentido crítico"

Dias depois da entrevista, Eugénia Tomaz enviou-nos um email: "As indicações que estão a ser dadas aos membros [é para] não comprarem o livro nem lerem." Mais alguns dias e nova mensagem: "Foi-me comunicado por uma directora numerária e pelo representante máximo da Obra em Portugal, Padre José Rafael Espírito Santo, que decidiram excluir-me como membro da Prelatura. Apenas verbalmente e sem qualquer documento oficial que tornasse objectivas as acusações de eu ser contra o espírito do Opus Dei." Questionado pela SÁBADO, o director do gabinete de imprensa da instituição, Pedro Gil, recordou que existe uma renovação anual do vínculo dos fiéis ao Opus Dei a 19 de Março, dia de São José, e que "a prelatura comunicou à Eugénia Tomaz que não via condições para essa renovação dado que a visão que tem sobre o Opus Dei se distancia, em pontos essenciais, da natureza e missão da prelatura tal como a Igreja as definiu e o fundador as propôs". Motivo para acrescentar, por email, as duas perguntas iniciais. 


Pondera abandonar a Obra?
Não. Do ponto de vista jurídico-canónico, não existe qualquer irregularidade minha face ao compromisso que assumi há 21 anos. Há também um problema teológico-espiritual que é necessário pensar conjuntamente e resolver. O motivo que me levou a escrever o livro [Opus Dei Profundo – Desconstrução de um Mito] é abrir a possibilidade a um momento de reflexão – interna e pública – e mostrar que há uma realidade maior que tem vindo a ser obstaculizada não só no interno do Opus Dei, mas também na Igreja e na sociedade-cultura.

No comunicado, o Opus Dei não refere que a leitura do seu livro foi interditada aos membros da Obra. Diz apenas que tem ideias que se distanciam. Esta interdição está em algum documento oficial?
A interdição faz-se nos meios de formação pessoal (conversa e correcção fraterna) e colectivos (formação semanal). Como é uma instituição laical, seria estranho que os membros seculares emitissem uma proibição oficial contra um direito próprio da liberdade dos cristãos leigos no mundo. Pelo contrário, a interdição é dirigida ao espaço de consciência de cada um: os membros são privados de exercer o seu sentido crítico e obrigados a adoptar o parecer emitido por um ou dois.

Usa "mito" no título. Que mito sobre o Opus quer desconstruir?
É uma referência ao fundador. Ele antecipa a revolução cultural, científica e não o entenderam. Começa a mobilizar leigos, a Igreja e chamam -lhe louco. E isso arrasta-se até ao Vaticano II. Ele sempre a insistir que os leigos estavam lá a fazer esse futuro, que não pertence apenas ao núcleo da Igreja institucional. Isso nunca foi entendido. Depois, ele insistiu na configuração jurídica de uma prelatura. Quando isso avança, com João Paulo II, em 1982, ele vai configurar os leigos numa nova forma institucional. Este é o problema.

É o problema para quem está na Igreja, que não aceita a existência de uma nova prelatura?
É estranho – e é isso que as pessoas não conseguem perceber – porque é que surge um satélite dentro de uma estrutura hierárquica da Igreja. Os leigos precisam de estar configurados? Porque é que é precisa uma prelatura? Significa que os leigos não podem estar, sem mais nem menos, a debitar doutrina. Tinham de ter formação.

Uma católica praticante dizia-me que não percebe o que é o Opus. Esta é uma dúvida comum a quem não é católico.
Os leigos têm a missão evangelizadora, que não é estar no púlpito, não é o estilo das paróquias. É na sua profissão. Isso é o Opus Dei.

A perspectiva de que o Opus é elitista e selectivo é errada?
Não. Escrivá começa nas periferias, como o Papa Francisco. Foi para as ruas, os hospícios, os hospitais. A Igreja não é a hierarquia, o Vaticano; é toda a cristandade que é "um mar sem margens". Como falo no livro, era necessário ir também aos intelectuais. Ele [o fundador] dinamiza as duas vertentes. Quando se cria uma prelatura, fica afunilado e a preferência é a Cultura: "Vamos a este topo evangelizar."

Como chegou ao Opus Dei?
Eu tratei, na clínica do Estoril, uma supranumerária que me fez um contacto com a residência dos Álamos, [aonde] comecei a ir. Passados dois anos e meio pedi admissão porque me propuseram: "Esta pessoa está apta e vai perceber esta realidade." Mas não é uma realidade afunilada. É a revolução cultural, científica e doutrinal. Há muitas pessoas, até da Obra, que não entendem. Têm formação e aplicam -na ao modo institucional, do clero.

Há pessoas, no interior, que não compreendem o Opus Dei?
Há um risco. Escrivá chamou a atenção na homilia que fez na Universidade de Navarra, em 1965, (Amar o Mundo Apaixonadamente): atenção à esquizofrenia, às bipolaridades. Ele previa o problema de as pessoas, metidas numa revolução, não conseguirem geri-la. Com a prelatura e a formação que temos, sabendo os documentos, estudando doutrina, a pessoa não pode ficar estritamente ali, senão isso é o clero, a consagração, a vida monástica. Tem que traduzir para a revolução cultural e científica. E nem toda a gente consegue fazer uma coisa destas. E adoecem.

Na sociedade ou no Opus?
As duas coisas. Quando os formadores não entendem e debitam a matéria, as pessoas adoecem: "Não tenho fé; não acredito no que está a acontecer; se a ciência não comprova essa realidade maior, como é que eu vou transformar isso, do ponto de vista cristão?"

Questiona-se a vivência diária do Opus Dei, a mortificação da carne, a existência de uma lista de livros cuja leitura é limitada…
Não é qualquer livro que pode ser lido. Há indicações internas porque há uma certa ausência de sentido crítico: ou se domina uma pluralidade de discursos – artístico, científico, político, económico – ou tem de se ser orientada. Essa orientação pode ser excessiva. Nunca liguei a essas listas. Para fazer trabalhos na minha aérea [e] como artista tinha de consultar outras coisas que extravasavam essas listas.

É errada a ideia de que as pessoas da Obra não vão ao cinema e não assistem a espectáculos?
Os numerários [celibatários, vivem normalmente nos centros de Opus Dei]. As outras pessoas podem ir. Há sempre uma indicação interna do ponto de vista moral, ético. Só que isso não pode condicionar a liberdade da pessoa de construir na sua profecia o seu talento, em função de mais realidade. Se fica condicionada, fica encerrada.

E é um risco?
É um risco porque não constrói. O secretismo é as pessoas não conseguirem explicar. O Opus devia estar aberto ao mundo. Como não se entendeu a maior parte deste fenómeno, há um fechamento.

Este secretismo parte de um fraco entendimento da sociedade ou dos membros da Obra?
Interior e exterior. Eu deparo-me com falta de fé nas pessoas que me estão a dar formação. Não podemos ficar neste fechamento.

Viu os filmes e leu os livros [de Dan Brown]?
Eu fui ver o filme de O Código DaVinci e do Anjos e Demónios.
Passam a imagem de que é uma organização secreta, em busca do poder, com violência.
Há pessoas e pessoas. Esse secretismo, essa violência interna, essa estranheza não correspondem à realidade. Observa-se uma tradição da Igreja (que o Escrivá vai buscar à tradição da Igreja) que é viver de acordo com a prática cristã no ano civil: vamos à missa, vivemos os sacramentos de iniciação cristã, a Quaresma… Mortificação, ele foi buscar os cilícios…

As senhoras dormem em tábuas?
Nós temos uma cultura que está a favorecer isso. Até os banhos de água fria. Li que, numa creche na Sibéria, as criancinhas vão para a rua tomar banho de água gelada.

Os sacrifícios são obrigatórios?
Nem toda a gente os pratica. É a liberdade laical. Não somos consagrados. O Escrivá fazia, porque tinha um contexto fundador. Quem está dentro da Igreja percebe por que é a mortificação, os fenómenos da mística. Mas não é a prática dos leigos. Foi um fantasma que se criou e que se ampliou. O Dan Brown trabalhou isso de um modo grotesco, até porque estes autores e realizadores não têm a linguagem multidisciplinar que é necessária.

Pratica a mortificação?
Não é prática para os supranumerários, é dos numerários e dos agregados. Mas é livre. A pessoa pratica, pode ter indicações dos directores ou orientadores espirituais, mas é doseado. Não são aquelas práticas (a autoflagelação) como o Dan Brown põe. A mortificação cristã é privar de uma matéria corrompida para fazer ver o novo estado da matéria.

A Quaresma é o exemplo dessa fase de privação.
É uma fase de privação mas a cultura da moda está nessa: ir para o ginásio, deixar de comer doces, gorduras. Há uma salvação anunciada que é estética. O Cristianismo é um bocado diferente: uma identificação com o redentor, flagelado e crucificado. Entramos todos nessa realidade maior e não porque somos bonitos, porque temos poder, dinheiro… são ideologias.

Há rituais obrigatórios, como sair da cama e beijar o chão?
Normalmente, a pessoa levanta-se a agradece ao redentor: "Sirvo-te!" E ajoelha-se perante a majestade de Deus. Mas eu não faço isso porque fico com tonturas [gargalhada]. Não me vou confessar por causa disso. Estou na minha condição laical e, se não conseguir levantar-me de repente, não me levanto e não é pecado. Esse rigor é fantasma. Há pessoas que levam isso, de facto, em rigor. Quando comecei a sentir um certo encaminhamento dessa constrição interna, estava a ficar sem respiração e abri portas, reconciliando-me com a cultura.

* Entrevista à revista "SÁBADO" editada a 11/06/16

*A fisioterapeuta e artista plástica, de 58 anos é há mais de duas décadas supranumerária, escreveu o ensaio Opus Dei Profundo – Desconstrução de um Mito (editado pela Guerra & Paz) e foi excluída pela instituição que diz ter interpretações distintas das suas.

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