29/05/2016

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ESTA SEMANA NO
"EXPRESSO"

Venezuela. 
“É uma lista muito grande a 
das pessoas conhecidas que já 
morreram em assaltos e sequestros”

Yenny deixou a Venezuela depois de uma tentativa de assalto no meio do trânsito no centro de Caracas. Maria ainda lá está e teme pelo futuro dos filhos, de nove e cinco anos, numa cidade onde falta tudo: comida, água, eletricidade, medicamentos, sabão para lavar a roupa e champô para o cabelo. As histórias das duas portuguesas nascidas na Venezuela espelham bem o momento que se vive no país. Quem pode parte; quem fica espera por uma mudança 
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O coração de Yenny de Abreu está na Venezuela e em tudo o que lá ficou. O namorado, os tios e os primos, os negócios e a casa, a vida que tinha antes daquela espécie de guerra ter tomado conta do país. “Não temos bombas a cair, mas há tiroteios e milhares de mortos, não há comida, nem segurança e não se vê futuro.”

A família mudou-se em dezembro para a Madeira depois de Yenny ter sido atacada por um grupo de homens armados quando estava parada no meio do trânsito no centro de Caracas. “Foi a a gota de água. Ainda hoje não sei como escapei, tentaram partir o vidro do carro com as pistolas, mas alguma coisa os fez desistir. Não tinha chegado a minha vez.”

O incidente acabou por precipitar a mudança. “Os meus pais, que nasceram na Madeira e têm aqui uma casa, falavam disso, o assunto foi muito discutido e chegaram a ponderar virmos só nós — as três filhas —, mas depois a decisão foi de que vínhamos todos. Nós vivíamos num sítio de muitos portugueses, em San Pedro de Los Altos, a uma hora e meia de Caracas, e todas as semanas havia notícias de um vizinho sequestrado ou de um cliente que tinha sido assaltado e morto. O que se pensava era quando seria a nossa vez. Lembro-me que, quando pediam o resgate ao fim de semana, os conhecidos tentavam reunir o dinheiro para evitar que matassem o sequestrado.”
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Consciente de que era apenas uma questão de tempo, a família tratou de deixar os negócios — uma empresa de sementes e químicos para agricultura — a uns primos. “Tínhamos também uma fazenda para a produção de flores, mas faliu porque dependia da importação de sementes da Holanda. A empresa de produtos para agricultura ainda funciona, mas os meus primos dizem que agora está ainda pior. Quando me vim embora já nem sabia o que era comer uma maçã.” A casa de dois andares onde viviam também ficou para trás, está fechada. “Todos os dias me lembro da casa e tenho medo que aconteça alguma coisa.”

Antes de deixar a Venezuela, Yenny teve ainda que percorrer toda a burocracia que implica viajar para fora do país, mesmo quando se tem dinheiro para pagar as passagens. “São poucas as passagens que a companhia venezuelana abre para os voos para Madrid, a única ligação à Europa. Esta é a única que nos permite pagar em bolívares, mesmo assim a preços altos. Tenho umas pessoas de família que vão chegar agora e que pagaram 550 mil bolívares [cerca de 50 mil euros], 20 vezes o ordenado mínimo venezuelano. As outras companhias obrigam ao pagamento em dólares ou euros por transferência internacional ou cartão de crédito internacional.”
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As cinco passagens custaram seis mil euros, além da noite num hotel no Panamá já que não havia voos diretos de Caracas para Lisboa, mas o governo não autorizou os dois mil dólares no cartão de crédito, a única forma legal de sair com dinheiro da Venezuela. A Yenny e à família valeu o dinheiro que pai tinha guardado nas contas na Madeira, mas até isso gerou um sobressalto. Duas semanas depois da chegada à Madeira, o colapso do Banif levou o pai às filas no banco para salvar o dinheiro que tinha poupado uma vida inteira. “O meu pai ficou com medo, lembrava-se bem do desespero dos clientes que perderam tudo no Banco Espírito Santo.”

Seis meses depois, Yenny, que era a contabilista diplomada na empresa do pai, trabalha como esteticista num cabeleireiro no Funchal, uma irmã é empregada numa loja num centro comercial e irmã mais nova estuda no 10º ano. “O meu pai ainda não decidiu se investe ou não aqui, eu também não sei se vou ficar. A maioria dos portugueses da Venezuela da minha geração encara a Madeira como um ponto de passagem, um sítio seguro para pensar o que fazer depois. Eu tenho amigas espalhadas pelo mundo. No Chile, em Madrid, até na Austrália. O meu dentista, por exemplo, trabalha na Colômbia. E eu ainda não sei o que fazer, mas quando percebi o rumo que levava o país comecei a tirar cursos de maquilhagem, de estética, de manicure. A ideia era ter uma coisa que pudesse fazer em qualquer parte do Mundo e é isso que agora me sustenta.”

A preocupação, no entanto, não acabou. O namorado ainda vive na Venezuela, e estão lá primos com quem fala todos os dias. E todas as notícias são seguidas com atenção como a recente morte de uma portuguesa numa tentativa de sequestro. “Ainda noutro dia fizemos a conta às pessoas conhecidas que já morreram em assaltos e sequestros. É uma lista grande, muito grande.” O coração de Yenny, 28 anos, continua na Venezuela, mas agradece todos os dias viver agora num lugar seguro onde não falta comida nas prateleiras do supermercado. “Nem imagina a sensação de entrar no supermercado e poder comprar de tudo.”

Maria, nome fictício, sabe bem o que é passar horas na fila do supermercado e não ter nada para comprar no fim da espera. “Há uns dois meses que não sei o que é beber café com leite”, lamenta a portuguesa nascida na Venezuela e a viver em Caracas. “Falta leite, falta farinha, falta açúcar, não há carne e o que aparece é muito caro, vendido no mercado paralelo.” O que, no caso de Maria, é ainda mais grave já que tem um negócio de venda de bolos. A falta de farinha e de açúcar tornou tudo muito mais complicado. “Se eu me mudava para a Madeira? Se aparecer uma oportunidade não deixo passar, mas teria de ter um emprego, uma maneira de sustentar os meus dois filhos.”
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O futuro dos filhos, um de nove e outro de cinco anos, é o que mais preocupa Maria, de 44 anos, filha de emigrantes madeirenses. “Todos queremos o melhor para os nossos filhos, que tenham qualidade de vida, que tenham uma boa escola, cuidados de saúde, mas agora nem há comida para comprar. Passa-se a vida na fila do supermercado”. Se a falta de comida é o que mais a preocupa, a verdade é que faltam também outros bens como champô para o cabelo ou sabão para lavar a roupa. “Agora trocamos produtos. Quem tem champô troca por sabão.” E quando não há é preciso improvisar o melhor que se souber. Há quem lave a roupa com sabão da loiça.

“Também falta a água. Aqui, na zona de Caracas onde vivo, desligam a água potável de quinta a domingo, às vezes só ligam na segunda-feira de manhã. Não sei que caminho isto leva, mas estamos todos à espera de uma mudança e o que virá depois não será nada bom.” Nas ruas há insegurança, o dinheiro desvaloriza todos os dias e tudo é muito caro, mesmo muito caro. A ideia de deixar a Venezuela também é ponderada por Maria, mas em Caracas tem a família mais chegada, o pai e a irmã. A Madeira, onde vivem tios e primos, seria um bom destino se houvesse trabalho, mas a terra dos pais é uma das regiões portuguesas com maior taxa de desemprego.
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“Tenho nacionalidade portuguesas e os meus filhos também. Sei que na Madeira teria boas escolas para os meus filhos, seria capaz de garantir uma boa qualidade de vida, além disso tenho família, tios e primos. Aqui os colégios privados são muito caros, as escolas públicas não prestam. Aqui nem sequer há medicamentos.” E Maria lamenta o estado a que chegou a Venezuela, um país muito bonito, com tantas belezas naturais e tantas riquezas como petróleo, ouro e diamantes. “Este era um país de oportunidades.”

* As ditaduras não são de esquerda nem de direita, são ditaduras e Maduro é um ditador, oxalá apodreça em breve.

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