25/03/2016

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HOJE NO 
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"

Teorias de conspiração, 
raiva, perplexidade e tristeza 
no bairro de Abdeslam

Nos 'media', Molenbeek é sinónimo de jihadistas e seus cúmplices, o lugar de onde saíram centenas de combatentes do Daesh. Ao vivo, num dia cinza e frio, é assim

Wafae não é exatamente o tipo de rapariga que se espera encontrar num bairro que o mundo inteiro vê como um coio de radicais islâmicos. Longos cabelos negros, pestanas postiças, unhas rosa shocking, jeans skinny a delinear as pernas rechonchudas, iphone plus na mão. Está à porta de um prédio com duas amigas, Sarah e Inez. Elas têm 19 anos e estudam, Wafae, enfermeira, tem 20. E opiniões muito claras. "Para mim isto é um golpe montado pelo Estado." Um golpe? Montado? Por que Estado? "É complicado explicar." Mas refere-se aos atentados? "Sim. Eles fizeram isto mas tinham boas razões. Vamos ficar à espera de saber o que se vai passar."
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São cinco e meia da tarde. Estamos no centro de Molenbeek, prédios baixos, antigos, mas sem especial mau aspecto, praticamente uma mercearia, com muitas caixas de fruta, em cada esquina, ruas limpas, e, à exceção de algumas mulheres de negro da cabeça aos pés e só o rosto de fora, pessoas com aspecto normal, a maioria claramente de origem magrebina. Não é a imagem clássica do bairro suburbano desfavorecido, até porque Molenbeek está muito longe de ser um subúrbio: fica bastante perto, por exemplo, da Praça da Bolsa, onde se reúnem os que querem homenagear os mortos e feridos nos atentados, praça que, por sua vez, é ao lado do ex libris de Bruxelas, a Grande Place. E daqui, de onde está Wafae, até à Rue des Quatre Vents, onde Abdeslam foi preso, são cinco minutos.

"Salah não é uma pessoa violenta"
Voltemos à conversa: "Boas razões?" Wafae olha-me com os seus enormes olhos escuros, muito séria. "Expliquei-me mal, não era isso que queria dizer. Eles foram endoutrinados." Hesita. "Eu conheço o Salah. Ele não é uma pessoa violenta. Nem ele nem os outros. Não eram assim, não é possível que tivessem ficado assim num mês. A ponto de matar gente inocente."

Sarah, sentada na soleira da porta ao lado, assume de repente, desafiadora: "Eu sou prima dele." Divertida com a perplexidade causada, apressa-se a esclarecer que "não sabia onde ele estava, não podia dizer. Mas é meu primo, defendo-o." É mesmo, prima de Abdeslam, ou está a inventar? Wafae garante que é verdade, sem nunca perder o ar sério. Se pudesse falar com Salah, diz, perguntava: "O que é que se passou realmente? Quem é que te obrigou a fazer isso?" Abana a cabeça. "É que não faz sentido, por isso digo que é um complot." Sarah volta à carga: "Sabe porque é que não deixam a mãe dele ir visitá-lo? É mãe dele, caramba. Ela está doente com isto, não percebe nada." A terceira rapariga, Inez, fala muito depressa: "Vi-os prenderem-no. Bateram-lhe."

Wafae abre um link no telefone
"Tem de ler isto. Não dá para ler aqui agora, porque é muito grande, mas anote e leia mais tarde. Vai perceber o que estou a dizer. Porque, repare: se eles quisessem de facto matar muita gente, acha que as coisas se tinham passado como se passaram? Em Paris, por exemplo, estavam no estádio e rebentaram-se cá fora. Podiam ter matado muito mais gente lá dentro. E o irmão do Salah (Brahim, 30 anos, que se explodiu no Comptoir Voltaire, um café do Boulevard Voltaire, a 13 de novembro), nem matou ninguém." Sarah, de novo: "Salah não é um terrorista."

São, garantem, as três muçulmanas. Não usam véu porque "é uma opção, não obrigatório", e usar véu implica uma série de obrigações, que enumeram: "Não falar com rapazes, não ir à discoteca, ir a Meca..." Sobre a imagem do bairro, encolhem os ombros. "É normal. Há aqui muitas nacionalidades. Italianos, portugueses." Riem com a menção a Portugal. "Mas às vezes sinto que me discriminam quando vou procurar trabalho. E se digo que sou daqui é pior." Um bairro normal, mas perguntam, com apreensão: "Anda por aqui sozinha?". E a seguir: "Podíamos ir beber um café consigo, mas o mais próximo é só para homens." E quando, no fim da conversa, pergunto onde posso apanhar um táxi, Wafae oferece-se para me acompanhar, para no fim explicar: "Foi para sua segurança."
Mas recuemos um pouco, à teoria da conspiração. "Vão esperar que isto fique calmo e o Daesh vai voltar a fazer mais atentados. É preciso deixar de atacar outros países, assim eles deixam de nos atacar." Eles quem? Wafae faz um ar ligeiramente enfadado. "Já reparou que eles só atacam países com petróleo? E que se o Daesh fosse motivado pela religião, atacaria Israel, que ocupou a terra dos palestinianos e os massacra? O Daesh é um golpe montado pelo Estado." Mas por que Estado? "Vários. Da Europa, da América. Esses todos. Drogam as pessoas, sei lá o que lhes fazem para elas depois fazerem estas coisas."

"Sentimo-nos um Zoo"
Wafae e as amigas não são as únicas pessoas encontradas ao acaso nas ruas de Molenbeek a, no meio da conversa, revelarem que conhecem Salah Abdeslam ou a família. E certamente não são as únicas a não querer fornecer a identificação completa, mails, números de telefone. De facto, ninguém diz o apelido, por vezes nem mesmo o primeiro nome. E ninguém fornece um contacto. Mas poucos recusam falar, como fez a diretora de uma escola básica do bairro recomendada pela sua política de integração que, contactada pelo telefone, é cortante: "Não, temos que chegue. Sentimo-nos um Zoo. Foi em novembro, foi na sexta-feira... Do que precisamos agora é de tranquilidade. De trabalhar com as crianças, que nos deixem em paz. O que se passou agora não foi aqui, foi no centro da cidade. Não vai encontrar nenhuma história aqui na nossa escola, connosco. Os alunos e os professores já passaram que chegue. Lamento, mas não."

Na verdade, espantoso é que alguém em Molenbeek ainda tenha paciência para jornalistas. Ao lado do nº79, o prédio onde Abdeslam estava escondido, a farmácia é um corrupio de equipas de reportagem. Por exemplo estes dois eslovacos que não arranham nada de francês e aqui andam, desolados, a tirar fotos e sem conseguir fazer uma única entrevista. Uma senhora de 63 anos que nem o primeiro nome aceita dizer sai, de roupão, disparada da porta de um prédio da rua perpendicular à Des Quatre Vents para os verberar: "Para que estão a tirar fotos ao prédio e à rua? A pessoas que não fizeram nada? Que mal fizemos nós? Vivo aqui há 42 anos, não temos nada a ver com essa merda, com esses merdas. Não fazemos merda e não queremos que façam merda. Queremos viver tranquilamente, vivemos muito bem com os belgas, comemos com os belgas, adoramos os belgas." E não é belga? Pára, surpreendida. "Sim, sou belga também, claro." Acalma-se. "Sabe, desde que isto sucedeu que estamos fartos. Eu só de falar consigo já me está a subir a tensão." Toco-lhe no braço, sorri. É de onde? "Sou de Casablanca. Somos a primeira geração a vir para a Bélgica. E ele estava aqui ao meu lado e eu não sabia. Ficamos doentes com isto. Se um filho meu fizesse aquilo, nem sei. Olhe, bato na madeira. Sabe o que lhe devem fazer, ao Abdeslam? Mandá-lo para Marrocos."

"Que raio de religião é a tua?"
Não é a única com essa opinião. Mohamed, 30 anos, que está mesmo em frente ao nº 79, acha o mesmo, se bem que quando se lhe aventa a hipótese de isso poder significar a pena de morte recua na ideia. "Ah, não. Isso também não." O que seria adequado, então? "Sei lá, um mínimo de 10, 15 anos." 
Mas queria mandá-lo para Marrocos porquê? "Para ele perceber que aqui se vive bem, temos tudo aquilo de que precisamos. A vida é muito pior lá." Estamos a falar há um bom bocado quando Mohamed confessa que andou com Salah na escola. "Ele é quatro anos mais novo. Mas todos tínhamos boa opinião dele. Era um rapaz doce, simpático, que não traía os outros. Correto." Então, como acha que isto sucedeu? "Foi manipulado." Podia acontecer com outra pessoa qualquer? Consigo, por exemplo? "Nem pensar. Eu fui bem educado. Sei como o mundo funciona. Mas, repare, ele não foi capaz de se matar. O irmão explodiu-se mas ele não." Que lhe diria, se pudesse visitá-lo? "Olhe, fico emocionado só de pensar nisso. Aconselhar-lhe-ia coragem e paciência. Dir-lhe-ia: "Não devias ter feito isto, fizeste algo de grave, mas tens toda a gente que te conhece do teu lado. E espero que mudes de ideias."

Na esquina a seguir Ilias, 18 anos que parecem 15, está na macacada com um amigo. Desmancha-se a rir com a nacionalidade da jornalista. "Sei palavrões na sua língua. Tenho um colega da escola, o Tiago, que me ensinou." Bom professor, o Tiago, a crer na demostração que se segue. Mas a risota acaba abruptamente: "É completamente bizarro, tudo isto. Ver o nosso bairro na TV, saber que tipos pouco mais velhos que eu se fazem explodir." Não, Ilias nunca viu Abdeslam mais gordo. Mas gostava de lhe fazer uma pergunta: "Que raio de religião é a tua? Não há religiões para matar pessoas inocentes."

Sobre isso, tanto para dizer. Mas vamos à última paragem, que na verdade foi o início da reportagem, uma loja de ferragens quase em frente ao prédio 79. Ben, 48 anos, é o dono. Tem tempo para falar, entre clientes esparsos que o saúdam com Salaam Aleikum, a paz esteja contigo. O bairro, diz, costumava ser "convivial". Agora é menos: "Desde que isto começou as pessoas estão mais fechadas." Para não variar, conhece a família Abdeslam. "O irmão mais velho costumava vir cá muito. Mas nunca mais o vi. Que acho da família? Bom, uma coisa é certa: se olharmos para o percurso do Salah, vemos que ele foi à escola, trabalhava, tinha um emprego estável. Criou os seus próprios problemas. Como, porquê? Não percebo. Era preciso ter uma bola de cristal." Nascido na Bélgica de pais marroquinos, Ben não nega que existe discriminação contra os magrebinos. Mas, acha, "sociedades sem discriminação não existem". E as consequências dos atentados em termos políticos não o assustam. "Pode ser que venham aí medidas securitárias, a extrema direita. Se for a extrema direita democrática, não é um problema. Podem ser mais duros, mas isso não é mau." Aliás, costuma votar à direita. "Mas não creio que mais medidas de segurança resolvam alguma coisa. Melhores serviços de informação, talvez." Uma senhora de idade, túnica e cabelo coberto, interrompe, vem pedir-lhe que arranje uma vassoura. Pergunta: "Jornalista? Vem por causa do que aconteceu, não é?" Arqueia as sobrancelhas: "Não me pergunte o que penso, não sei o que dizer de tudo isto."

Fernanda Câncio
Enviada especial a Bruxelas

* Vidas terríveis.

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