20/03/2016

ANA ALEXANDRA CARVALHEIRA

.




Amores plurais: 
A escolha da não-monogamia

O interesse romântico e/ou sexual por mais de uma pessoa é um dilema que a monogamia ainda não resolveu

É possível amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo? Quando amamos realmente uma pessoa podemos sentir atração sexual por outra? Se me sinto atraído por outra pessoa isso significa que o meu casamento não está bem? 
.
Estes são alguns exemplos de perguntas que assombram muitíssimas pessoas em todas as sociedades e culturas onde o sistema relacional é a monogamia. Ouço estas perguntas com bastante frequência no meu consultório. São perguntas que geram dissonância, angústia, dúvida e conflito, e algumas vezes levam à ruptura de relações e perdas significativas, o que traz bastante sofrimento.
 .
O interesse romântico e/ou sexual por mais de uma pessoa é um dilema que a monogamia ainda não resolveu. Nem pode resolver. Porque seguir o desejo erótico implica uma tendência naturalmente poligâmica.
 .
Recordo-me de Florentino Ariza, personagem do Amor nos Tempos de Cólera, do magnífico García Márquez, no aceno de despedida à amada que partia no navio, quando já pensava em ir ao encontro de outra (amada), profere num acesso de raiva “O coração tem mais quartos do que uma pensão de putas”.
.
Viver uma relação com total honestidade consigo próprio e com o outro, passa por encaixar a ideia de que outra pessoa pode chegar de repente e entrar no nosso coração. Passa por aceitar que a pessoa-que-está-connosco pode ir embora a qualquer momento. E é duro aceitar a inevitável falta de segurança e instabilidade que define a condição humana.
 .
Ser verdadeiramente livre, respeitar e aceitar a liberdade do outro, é das tarefas mais difíceis e desafiadoras do ser humano. E talvez por isso tenha sido necessário inventar a monogamia como um sistema regulador das relações. Um sistema regulado pela sociedade, pela religião e pelas leis.
 .
É como tão bem escreveu Fernando Pinto do Amaral, na revista Ler, em 1996: “Sendo cada ser humano único e diferente de todos os demais, generalizou-se a partir de certa altura a ideia de que a atracção sexual deveria fixar-se num ente específico onde cristalizassem as emoções, de modo a que o desejo tomasse o nome de amor e a que as sensações (sobretudo físicas) pudessem transformar-se em sentimentos (sobretudo psíquicos). E dessa ilusão tem vivido uma boa percentagem da literatura amorosa do Ocidente”.
.
O que é a não-monogamia? 
A liberdade para seguir o desejo erótico, envolver-se na experiência amorosa, e criar vários espaços no coração para gostar e amar várias pessoas ao mesmo tempo mas, sempre numa condição de consensualidade, ou seja, todos de acordo. Esta é a grande marca das relações não-monogâmicas. Uma relação com afectos, compromissos, planos, e tudo aquilo que as pessoas consensualmente decidirem.
.
Quando falamos de relações não-monogâmicas, falamos de relações românticas, sexuais, amorosas e afectivas consensuais, entre duas ou mais pessoas de qualquer sexo e género. Todos os parceiros explicitamente concordam que cada parceiro pode ter relações românticas e/ou sexuais com outras pessoas.
.
Variantes possíveis das relações não-monogâmicas são, por exemplo, as relações abertas (ou casamentos abertos), em que ambos concordam que podem ter sexo extra-díade, e o poliamor - o envolvimento em múltiplas relações amorosas com o consentimento de todos os envolvidos, existindo um grau de compromisso. A principal característica das relações não-monogâmicas é que as pessoas podem dispor dos seus afectos e dos seus corpos livremente, consensualmente.
.
Os sistemas de poligamia, que existem nalgumas sociedades e culturas, não são necessariamente consensuais, e por isso podem tornar-se em sistemas opressores de dominação (como a monogamia também pode ser).
.
Uma das questões que vulgarmente surge sobre estas relações, é o ciúme. Como é que as pessoas não são esmagadas pelo ciúme. De um modo geral, o ciúme tem subjacente um sentimento de posse exclusiva da outra pessoa, e por conseguinte, o medo de a perder. A grande questão é o que fazemos com o ciúme. Podemos lidar com o ciúme com maturidade e controle, ou podemos atormentar e violentar a outra pessoa. Agir com agressividade motivado pelo ciúme é em grande medida o resultado da cultura que nos ensina a ser possessivos, pouco respeitadores do outro e consumidores egoístas e auto-centrados.
.
Para viver uma relação não-monogâmica é necessário muita empatia, alteridade, aceitar a liberdade do outro, discutir fraquezas, negociar limites, pensar e agir de forma ética. Mas não é sempre assim, cada vez que se juntam duas pessoas que trazem backgrounds diferentes, vivências e histórias de vida completamente diferentes? Eu diria que estes são os desafios de qualquer relação, monogâmica ou não. E não é fácil.
.
E o swing? 
A literatura científica tem considerado o swing como uma variante da não-monogamia. O swing é uma prática sexual entre casais em que, numa situação específica e delimitada, ambos membros de um casal se envolvem sexualmente com os membros de outro casal. De um modo geral, o swing acontece em contextos monogâmicos, onde a excitação é justamente a "transgressão controlada". Ou seja, são casais monogâmicos que procuram esta prática em contextos muito particulares (por exemplo, em clubes ou festas organizadas para o efeito), e quando saem dali, mantêm a sua relação tradicional, na maioria das vezes, monogâmica.
.
A dificuldade de abordar este tema e de o compreender, é a enorme diversidade que se encontra a nível dos comportamentos sexuais e do grau de compromisso das relações.

Comportamentos modernos, atitudes velhas
No contexto social actual assistimos a uma banalização do sexo, em que a sexualidade é vista como um produto numa sociedade cada vez mais de consumo. Neste contexto de pós-modernidade, muitas pessoas ficam baralhadas em comportamentos e atitudes e envolvem-se nas ditas “relações alternativas”. Mas muitas vezes, não é uma escolha em liberdade e em verdade, consigo próprio e com o outro, e a pessoa acaba por sentir-se perdida.
.
Independentemente de qual o sistema em que nos relacionamos, é fundamental haver uma ética na relação amorosa e/ou sexual. Uma ética do consentimento, da igualdade, do prazer partilhado, e do direito à vinculação e desvinculação.

* Professora e investigadora no ISPA. Realiza investigação na área da sexualidade, aliada à prática clínica que mantém desde 1997 como psicoterapeuta. É membro da International Academy of Sex Research, foi presidente da Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica e tem dezenas de artigos publicados em revistas científicas internacionais. O que mais gosta, é do trabalho clínico com os clientes, onde mais aprende e de onde retira as questões que quer investigar.
.
IN "VISÃO"
08/03/16
.

Sem comentários:

Enviar um comentário