01/02/2016

FARANAZ KESHAVJEE

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Conflito ou
 convergência?

A história da relação entre muçulmanos e cristãos teve momentos de convergência e de conflitos. Mas também, felizmente, ciclos positivos que podemos repetir.

A história da relação entre muçulmanos e cristãos teve momentos de convergência e de conflitos. Estudiosos da cristologia muçulmana encontram no Alcorão alguns exemplos que consubstanciam diferenças de raiz teológica. O Alcorão traz inúmeras referências a Jesus, a Maria e à mãe de Maria que não vão ao encontro de alguns dogmas escatológicos cristãos.

Embora haja aspetos consensuais no Judaísmo, Cristianismo e Islão, não podemos escamotear aspetos que provocaram ruturas e divergências de fundo entre estas comunidades de fé.

Em relação ao Cristianismo, uma dessas divergências tem a ver com a questão da crucificação de Jesus e as respetivas leituras do Alcorão feitas tanto pelos exegetas muçulmanos como pelos próprios cristãos. Na opinião de alguns intérpretes, o Alcorão afirma que a crucificação não aconteceu.
E negar a crucificação é negar o Cristianismo.

Ora vejamos: E eles disseram (vangloriando-se),"nós matámos o Messias, Jesus, o Filho de Maria, O Mensageiro de Deus" mas eles não o mataram, nem o crucificaram, aquilo foi apenas para que parecesse que tinha acontecido; e aos que estão cheios de dúvidas, sem conhecimento, mas apenas seguindo uma conjetura, fiquem sabendo que não o mataram. Atentai, Deus elevou-o até Si, e Deus é Todo-Poderoso, Sábio (Alcorão 4:155-157) Aparentemente, este é o versículo que criou o grande cisma entre cristãos e muçulmanos. Como poderia um evento histórico e conhecido ser negado pelo Alcorão? Para os cristãos, uma revelação que negue a história só poderia ser uma invenção.

O problema é o mesmo de sempre. A descontextualização do versículo e a interpretação literal, servindo as agendas dos intérpretes. Por exemplo, a expressão que surge entre aspas, sugere que Deus pede a morte de Jesus; todavia, nos versos anteriores, e face a tudo o que se diz de Jesus no Alcorão, percebemos que em resultado dessa expressão, Deus afirma que os opositores estariam enganados, porque efetivamente, Deus já o tinha salvo. Para corroborar esta tese, Todd Lawson, na obra The Crucifixion and the Qur'an explica que "para além de uma deturpação dos próprios estudiosos do Alcorão, a afirmação de que os muçulmanos não aceitam a crucificação, veio do Padre da Igreja Cristã, João de Damasco, no século VIII". Lawson diz que "a interpretação de João de Damasco é injustificada. O que o Alcorão diz é que os judeus não crucificaram Jesus, e isso é obviamente diferente de dizer que Jesus não foi crucificado. O ponto é: tanto João de Damasco como muitos exegetas do Alcorão, mas não o Alcorão em si, negam a crucificação. Assim, a exegese do verso 4:157 não é uniforme; as interpretações vão desde a recusa direta da crucificação de Jesus até à afirmação simples da historicidade do evento".

Isto lembra a tese da galinha e do ovo: qual veio primeiro.

Ou seja, não se pode ter a certeza de que os conflitos resultam em função das divergências teológicas baseadas nas escrituras, ou se elas são usadas como ideologias para legitimar outro tipo de poderes.

A verdade é que há registos históricos de salutar convivência e tolerância entre cristãos e muçulmanos. Exemplos profícuos deste tipo de relacionamento decorreram no período que Joel Kraemer definiu como O Humanismo no Renascimento do Islão, em finais do século X. Aí governavam as dinastias buyidas, samanidas, safaridas, fatimidas, hamdanitas, e omíadas na Península Ibérica. Curiosamente todas xiitas e que cultivaram, juntamente com as minorias cristãs e judaicas, um intenso movimento de mudança cultural e expansão do conhecimento. Kraemer sugere que o papel destas minorias foi determinante para a inovação, pois normalmente a estratégia integrativa das minorias é não só dominar o conhecimento da maioria mas ultrapassar a cultura dominante. No que respeita à liberdade de expressão, Kraemer refere relatos de que o rei buyida não apenas revigorou estas minorias, como encorajou-as nos seus empreendimentos, e deu total liberdade para que promulgassem as suas profecias, sem necessidade de dissimular; desde que ninguém forçasse o outro a algum tipo de fanatismo religioso.

A História tem, felizmente, ciclos positivos que podemos repetir.


* Faranaz Keshavjee nasceu a 11 de Janeiro de 1968, em Moçambique, na então capital Lourenço Marques e chegou como “retornada” a Portugal, em Setembro de 1974, aterrando no Bairro Alto, bem no meio das ruas estreitas e carismáticas por onde passavam o fado, as varinas e os travestis. 
O fascínio e o gosto pelo estudo e investigação nas ciências sociais e humanas levaram-na a estudar primeiro para uma licenciatura em Antropologia Social e depois um Mestrado em Psicologia Social no ISCTE, seguindo depois para o Reino Unido onde se especializou em Estudos Islâmicos e Humanidades, no Institute of Ismaili Studies em Londres, e prosseguindo a sua investigação para um doutoramento na Universidade de Cambridge. 
As questões de género e identidades sociais dos muçulmanos em Portugal fizeram parte dos seus trabalhos académicos. Quando regressou a Portugal trabalhou no Centro Ismaili como consultora académica, e deu aulas nas Universidade Católica, Lusófona e no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. 
Traduziu obras académicas sobre o Islão, foi conferencista em debates nacionais e internacionais, cronista no Público e bloguer no Expresso. 
O 11 de Setembro foi a data a partir da qual passou a ser referência incontornável nas discussões, entrevistas e publicações sempre que se tratasse de questões ligadas ao Islão e às sociedades muçulmanas.

IN "VISÃO"
30/01/16

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