ESTA SEMANA NO
"EXPRESSO"
"EXPRESSO"
Relatos de um massacre silencioso:
Ruqia Hassan, que morreu por mostrar
ao mundo o horror do Daesh
O heroísmo dos cidadãos-jornalistas da Síria tem alguns rostos visíveis. E desfechos trágicos
Ruqia Hassan, uma antiga estudante de filosofia, tinha 30 anos. Vivia
em Raqqa, a cidade síria que o autodenominado Estado Islâmico (Daesh)
conquistou em 2014 e é geralmente considerada a sua ‘capital’. Nos
últimos anos, a jovem dedicou-se a mostrar ao mundo o que via no
dia-a-dia. Acabou assassinada - morreu em setembro. Mas a sua morte não
foi logo conhecida. O Daesh apropriou-se das suas contas sociais e
usou-as para tentar descobrir quem eram os amigos e associados que
colaboravam com Ruqia - assim procurando garantir que o único retrato da
cidade oferecido ao mundo é o que o próprio Daesh constrói na sua
propaganda.
.
Raqqa foi em tempos um lugar tranquilo, com um milhão
de habitantes, situado numa zona relativamente próspera. Com a guerra
civil, tornou-se um ponto de refúgio para muita gente oriunda de cidades
onde a situação tinha ficado demasiado perigosa. Entre os
recém-chegados havia uma grande variedade de rebeldes, uns ligados ao
Exército Livre da Síria, outros a organizações islamitas. Inicialmente,
chegou-se a pensar que Raqqa poderia ser o protótipo para uma nova
Síria, aberta e democrática. Mas a incapacidade de os vários grupos se
entenderem, associada a erros básicos de gestão que impediam
necessidades básicas de serem satisfeitas, permitiram ao Daesh tomar o
poder. A partir desse momento, a vida mudou.
A primeira coisa que
o Daesh fez, além de matar os seus opositores, foi tornar claro quem
mandava. À porta da cidade foram instaladas grandes bandeiras do grupo.
Execuções frequentes, algumas seguidas de crucificação, aterrorizaram os
habitantes. Foram publicadas as novas regras que passavam a aplicar-se:
orações na mesquita cinco vezes por dia, proibição de álcool e tabaco e
de as mulheres saírem sozinhas de casa, obrigação de andarem totalmente
cobertas... As ruas passaram a estar cheias de vigilantes armados,
incluindo mulheres vestidas de preto da cabeça aos pés. Os carros da
polícia de costumes, a hisbah, começaram a parar pessoas na rua
para avisar mulheres de que o véu não era suficientemente opaco ou o
resto da roupa suficientemente largo. Em casos desse tipo (havia outros
igualmente ameaçadores), o problema era sempre o mesmo: via-se demais.
Sob pena de morte
O que não se podia deixar que fosse visto por estranhos era a
realidade do quotidiano em Raqqa. Sendo a cidade um protótipo daquilo
que o Daesh oferecia às populações – a manifestação concreta de que
nascera realmente um estado novo, restaurando o velho 'califado' para a
era atual –, a mensagem tinha de ser controlada a cem por cento. Vídeos
que o grupo punha na internet davam uma imagem positiva da cidade. Mas a
mesma internet também servia para alguns habitantes transmitirem
imagens e relatos que davam uma imagem diferente.
Em abril de
2014, um coletivo de jovens chamado “Raqqa Is Being Slaughtered
Silently” (Raqqa está a ser massacrada silenciosamente - a sigla é RBSS,
o site do grupo tem uma versão em inglês)
começou a publicar imagens e vídeos sobre a vida real na cidade.
Filmados com telemóveis ocultos, eram postos em linha e imediatamente
apagados, para proteger os cidadãos-jornalistas que os obtinham. Não
demoraram a chamar a atenção do Daesh, uma organização conhecida pela
sua sofisticação mediática e em particular pela habilidade com que
utiliza a internet para captar recrutas.
Os seus líderes em Raqqa
falaram em traição e rapidamente prenderam vários “rebeldes”. Alguns
foram executados, entre os quais pelo menos um que nada teria que ver
com o assunto. Câmaras foram instaladas através da cidade. As patrulhas
do Daesh na cidade tornaram-se mais assíduas nos cafés de internet e
passaram a examinar o conteúdo dos telemóveis na rua.
Massacre silencioso
À medida que o Daesh ia descobrindo e
executando membros do RBSS, eles perceberam que, em última análise,
nenhuma forma de proteção era segura. Nem os cuidados com os telemóveis,
nem a estrutura em célula, que fazia com os membros não pudessem
revelar as identidades uns dos outros quando eram presos, por as
desconhecerem. Nada disso bastava. Mesmo os que iam viver para Gazientep
e outras cidades turcas permaneciam vulneráveis. Dois foram degolados
em sua casa no mês de outubro (o RBSS está a ser massacrado
silenciosamente, gozava a mensagem dos executores) e um documentarista
que trabalhava com o grupo, Naji Jerf, foi abatido a tiro na rua em
dezembro. Jerf não era formalmente membro do RBSS, mas estava a fazer um
documentário sobre eles e era um crítico bastante público do Daesh.
Além disso, era editor da Hentah, uma revista síria que documenta as
vidas diárias dos cidadãos do país.
Em novembro, o Comité para a
Proteção de Jornalistas, uma organização independente com sede em Nova
Iorque, atribuiu ao RBSS um dos seus prémios internacionais de liberdade
de imprensa. O comunicado nota que a Síria se tornou o país mais
perigoso para jornalistas em todo o mundo e nota que “o RBSS foi
declarado inimigo de Deus pelo Daesh”. No discurso de aceitação, o grupo
disse que os sírios “foram apanhados entre duas forças: um regime
criminoso, obcecado com poder e que diz lutar contra o terrorismo
matando crianças, e outro que espalha o mal e a injustiça e pinta de
negro a nação”.
Nessa altura, o RBSS tinha 18 jornalistas na
Síria e 18 na Turquia. Mas a escuridão já alcançara Ruqia. Presa em
agosto e acusada de contactos com o Exército Livre da Síria, terá sido
executada logo no mês seguinte. Nunca teve ilusões sobre o que
arriscava, como se vê num dos últimos posts escritos pela sua própria
mão:
- Ameaças de morte e quando #ISIS me prender e matar, está
ok Porque cortarão a minha cabeça e terei Dignidade é melhor que viver
em humilhação com #ISIS
* O Daesh tem de ser exterminado, parece que Putin não quer.
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