30/01/2016

ROSÁRIO GAMBOA

.





A democracia ao sol

Há dias assim, como o do domingo passado, quando a luz do sol parece bastar para derreter um inverno longo e triste que se vinha colando aos corpos. Havia gente na rua, muita gente e diversas camadas sociais, idades, rostos, que passeava ao sol; pessoas que faziam jogging no Parque da Cidade em grupos informais, improváveis, ou sozinhas numa solidão livre; caminhavam ao longo do rio, entre castanhas assadas e horizontes imaginados, pousavam nas esplanadas com os jornais ao colo e as primeiras mantas de piquenique estendiam-se à beira-mar. Tudo era banal: conviviam ao sol, misturavam-se, cruzavam-se e, assim, habitavam a cidade conferindo um sentido livre e autónomo ao espaço público.

Por que me emociona esta paisagem? Qual o seu simbolismo em manhã de eleições? Há mudanças profundas no nosso presente que já não vemos como tal, porque as interiorizamos como realidade segura. Mas talvez não seja...

Nos anos 70, o filósofo alemão Jurgen Habermas, analisando as sociedades contemporâneas capitalistas, defendia que a evolução dos seus sistemas socioculturais (valores, relações económicas e sociais,...) induz nas populações novas aspirações que se traduzem não meramente no consumo de bens privados, mas tendencialmente em "novas formas de interpretar o sentido da vida", conferindo-lhe dimensões qualitativas (saúde, educação, ambiente,...) e, fundamentalmente, a afirmação do seu direito individual e coletivo na construção pública de decisões políticas. Mais do que os ditames "ideológicos dos sistemas partidários", ou outros, as populações aspiram a uma construção prática da vida em comum onde as normas políticas tenham "validade moral" e reflitam e realizem consensos alargados, pragmáticos e revisíveis. Quando os sistemas políticos não respondem as estas aspirações gera-se "uma crise de motivação" que afeta a "legitimidade do sistema político."

As pessoas que dão conteúdo ao meu domingo ao sol são o testemunho de um longo processo de transformação sociocultural, de uma manhã de abril que gerou os percursos para uma nova consciência identitária e cívica. Transportam aspirações consolidadas, naturalizadas, que são uma realidade que não quer voltar atrás. Saiba o sistema político compreender e transformar este potencial, esta consciência de si, numa força.

Mais do mesmo não motiva. Desmobiliza. E quando tal acontece há coisas que deixam de ser certas.

As populações aspiram a uma construção prática da vida em comum onde as normas políticas tenham "validade moral" e reflitam e realizem consensos alargados, pragmáticos e revisíveis

*PRESIDENTE DO INSTITUTO POLITÉCNICO DO PORTO

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
28/01/16

.

Sem comentários:

Enviar um comentário