01/01/2016

CARLOS TAVARES

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Lisboa, 
31 de Dezembro de 2020:
olhando para trás

No notável artigo “Looking backwards”, escrito na década de 90 do século passado, Paul Krugman colocava-se no final do século XXI, comentando o que imaginou serem os desenvolvimentos do século XX.

Ao ser convidado a escrever sobre as perspectivas para 2016, decidi tentar um exercício semelhante, naturalmente mais modesto, colocando-me no final do próximo quinquénio. Mais do que isso, imaginei duas histórias bem diferentes, deixando a escolha ao leitor sobre a que poderá vir a ser mais próxima da realidade.

Primeira história
Nos últimos cinco anos confirmaram-se os riscos de instabilidade dos mercados financeiros que se perspectivavam em 2015.

Na prática, foi como se a crise financeira que se desencadeou violentamente em 2007/2008 não tivesse conhecido solução e se tivesse prolongado por quase 14 longos anos. Em 2015, enquanto Presidente da CMVM (Comissão do Mercado de Valores Mobiliários), apresentei na Comissão de Orçamento, Finanças e Administração Pública um diagrama intitulado “A tempestade perfeita?”, sobre o potencial de conjugação de riscos criados sobretudo pelo prolongado período de taxas de juro muito baixas e de criação de liquidez sem precedentes pelas políticas monetárias. Esses riscos acabaram por se materializar fruto de vários desenvolvimentos negativos e cumulativos. No final de 2015 eram já evidentes os sinais de crise em economias que tinham sustentado o crescimento e a estabilidade de preços na década anterior. Refiro-me em particular aos designados BRIC (Brasil, Índia e China) e também outros mercados emergentes, particularmente da América Latina, ameaçando quer o crescimento económico, quer os preços dos activos reais e financeiros dessas economias. O facto é que no quinquénio terminado em 2015, apesar de uma estabilidade generalizada dos preços dos bens e serviços – propiciada pelos aumentos de produtividade nas economias emergentes para onde se deslocalizara parte da produção e por uma velocidade de circulação da moeda historicamente baixa – a abundante oferta monetária acabou por se reflectir num forte aumento dos preços dos activos reais. Novas “bolhas” surgiram no imobiliário em economias que a elas tinham escapado na génese da crise anterior e já repetidas noutras, mas também nos activos financeiros, sobretudo nos mercados obrigacionistas em geral e nos mercados accionistas, principalmente dos EUA e das economias emergentes. A consciência destes riscos levou a Reserva Federal (FED) a iniciar em finais de 2015 um percurso de subida das taxas de juro que pretendia fosse muito gradual. Ao mesmo tempo, o BCE propunha-se prolongar a política expansionista de compra de activos até Abril de 2017.

Acontece que 2016 viu agravar-se a crise económica e financeira nos mercados emergentes, bem como as tensões políticas no Médio Oriente, o que desencadeou a inversão do sentimento dos investidores, ao mesmo tempo que se invertia a queda dos preços do petróleo, que tinham baixado dos 40 dólares em 2015. O desinvestimento em activos financeiros levou a um acumular de liquidez que conduziu ao aumento das tensões inflacionistas e da instabilidade cambial. Tal conduziu os bancos centrais ao abandono das políticas monetárias expansionistas de quase uma década e a uma subida das taxas de juro mais rápida. Em resultado, os preços das obrigações – públicas e privadas – e das acções caíram fortemente, o mesmo acontecendo com o imobiliário.

Todas estas circunstâncias levaram a um aumento do risco de crédito e a taxas elevadas de incumprimento nas obrigações de ‘high yield’, que tinham sido profusamente emitidas entre 2011 e 2015. Acontece que parte significativa destes activos era detida pelos bancos centrais que, por isso, registaram perdas elevadas em 2016 e 2017, criando assim mais moeda e obrigando a novas operações de esterilização monetária. O círculo vicioso que se gerou implicou um forte efeito de riqueza negativo das famílias (conjugando depreciação de activos e cargas de juros mais elevadas) e uma deterioração da situação das empresas, o que levou à rápida degradação do seu risco de crédito e a consequentes perdas do sector bancário. Em 2018, muitos foram os bancos que tiveram de fechar, com perdas elevadas para investidores e aforradores, dada a incapacidade de auxílio por parte dos Estados, na sua generalidade com finanças públicas depauperadas. O período de deflação que se seguiu levou a uma forte queda do rendimento mundial, tendo implicado um completo reajustamento das políticas económicas e, finalmente, na Conferência de Bretton Woods II, já em 2020, à construção de um novo modelo de governação económica mundial, integrando as vertentes das políticas fiscais, monetárias, financeiras e de comércio externo (aqui passando a incluir dimensões ambientais, sociais e laborais outrora não consideradas). 2021 deverá ser, assim, o primeiro ano de funcionamento pleno do novo modelo, esperando-se que ele conduza finalmente à estabilização das economias e dos mercados financeiros.

Segunda história
Apesar dos riscos que em 2015 se acumulavam e que eram assinalados por organizações internacionais como a IOSCO ou o próprio FMI, foi possível mitigá-los gradualmente ao longo de 2016 e 2017, através de uma actuação articulada dos principais bancos centrais, dos supervisores prudenciais e dos reguladores dos mercados financeiros. A subida gradual das taxas de juro, a par de uma redução progressiva da liquidez injectada pelos bancos centrais e de regras prudenciais mais estritas, quer na banca quer noutras instituições financeiras, permitiram uma clara redução dos riscos nos sistemas financeiros. A supervisão das agências de ‘rating’ levou a uma avaliação muito mais rigorosa dos riscos de crédito que levou os investidores a ajustar progressivamente as suas carteiras. Os elevados níveis de dívida pública e privada que se verificavam em 2015 e a perspectiva de subida das taxas de juro levaram os Estados e as empresas a uma gestão mais rigorosa das suas finanças. Desse modo, teve finalmente início um efectivo processo de desalavancagem. Em consequência, o crescimento económico mundial em 2016 e 2017 foi muito modesto, com alguns casos de recessão moderada. A própria China aderiu a este movimento articulado de desalavancagem, não deixando todavia de sofrer correcções significativas dos preços dos activos financeiros e reais, mas criando uma base mais saudável para um crescimento sustentado. Os anos de 2019 e 2020 foram já anos de crescimento moderado mas generalizado, com níveis de inflação baixos e com os sistemas financeiros finalmente estabilizados. Os bancos foram-se tornando progressivamente mais pequenos e mais simples, voltando à tradicional especialização em banca comercial e de investimento, ao mesmo tempo que o sector não bancário se tornou um concorrente eficaz na captação de depósitos e no financiamento das economias. Fruto da forte ênfase colocada pelos supervisores europeus na protecção dos investidores, os produtos financeiros transaccionados nos mercados tornaram-se mais simples e transparentes. Ao contrário do que se antevia nos anos que precederam 2015, algumas inovações tecnológicas como a negociação algorítmica e de alta frequência acabaram por não ter grande sucesso, após terem ocorrido alguns acidentes em diversos mercados em 2016 e 2017, que só não tiveram consequências mais gravosas em virtude da decidida intervenção dos supervisores então já bem equipados para a supervisão daquele tipo de negociação. Na Europa, está em preparação a DMIF III, depois de se concluir que a segurança dos mercados e a protecção dos investidores exigem mais do que o que é proporcionado pela DMIF II, que entrou em vigor há apenas três anos.

Recordando um programa de televisão de há alguns anos, resta dizer ao leitor: agora escolha!

Infelizmente, o leitor só pode escolher qual a narrativa que acha mais provável e, ao contrário do programa de televisão, não pode determinar o resultado final. Todavia, há quem possa e tenha a obrigação de tudo fazer para que daqui a cinco anos se possa contar uma história mais próxima da segunda.

IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
30/12/15

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