19/01/2016

ALEXANDRE PARAFITA

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O piropo

Com tantos problemas que o país tem em mãos, quem havia de dizer que o Parlamento se iria ocupar, no final do ano, a discutir e a aprovar uma lei contra o uso do "piropo"? Será que é matéria tão pertinente assim, quando o Código Penal já contempla a almejada criminalização? Diz claramente o n.º 1 do art.º 181: "Quem injuriar outra pessoa (...) dirigindo-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração é punido com pena de prisão até três meses ou pena de multa até 120 dias". A pena é branda? Então recorra-se ao art.º 170.º (mais severo ainda perante casos de importunação sexual). Mas por quê retirar ao piropo, na sua dimensão holística, um espaço de sobrevivência?

Lembre-se que o "piropo" ou "galanteio" é um microtexto de literatura oral, reconhecido como tal nas diversas culturas, portanto parte integrante do património imaterial. Alguns são até verdadeiras alegorias estéticas, merecedoras de estudo literário. Claro que aí não entram conteúdos que, violando as regras da cortesia e da boa educação, mas também da autoestima pessoal e social, são já objeto das punições legais mencionadas. Seria até absurdo encobri-los sob o manto diáfano de um pretenso uso cultural.

Veja-se alguns dos muitos piropos que enriquecem a nossa literatura oral: "Vou pedir o molde ao teu pai pra fazer bonecas"; "Ainda dizem que as flores não andam!"; "Deus te guarde e me dê a mim a chave"; "Se Adão se perdeu por Eva com uma só maçã, eu perdia-me por ti com o pomar inteiro"; "Se a beleza fosse pecado, tu não terias perdão de Deus"; "Muito mal devem andar as coisas no Céu para os anjos andarem na terra"; "Se o Sol pudesse mirar-te deixaria de haver noite"; "Quem me dera ser o copo onde bebes, tu matavas a sede e eu matava o desejo"; "Que me valha a Virgem Pura, mas primeiro a tua formosura"; "Se eu chegar a morrer nos teus braços, hei de voltar do Céu para morrer de novo"; "Teus olhos lembram-me o mar, e pobre de mim que não sei nadar"; "Ao ver uma flor assim, vou já comprar o jardim"; "Se me deres as tuas lágrimas, eu nascerei nos teus olhos".

Subestimar, criminalizando, estes microtextos, deixa caminho aberto a olhares reprovadores para outros géneros de literatura oral, de igual riqueza estética ou antropológica, como sejam provérbios, quadras, apodos tópicos, trava-línguas, pregões, fórmulas de superstições, perlengas, anfiguris ou adivinhas. Seria péssimo.

* ESCRITOR

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
15/01/16


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