31/12/2015

MARIA MANUEL MOTA

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O mundo em mudança

Nada na história recente da atribuição do Nobel fazia prever que se regressasse aos tempos em que se atribuía o prémio à descoberta de um antibiótico, por exemplo

Na segunda-feira, 5 de outubro, quando cheguei ao meu gabinete, no Instituto de Medicina Molecular, já tinha inúmeros pedidos de entrevista/comentário, dos mais diversos meios de comunicação social. Motivo? Uma completa surpresa. O mais desejado prémio, o Nobel da Fisiologia ou Medicina foi para três cientistas que fizeram descobertas relacionadas com o tratamento de doenças parasitárias. Dividido, metade para William C. Campbell e Satoshi Omura "pelas suas descobertas sobre uma nova terapia contra infecções causadas por parasitas nemátodes" e a outra metade para Tu Youyou "pelas suas descobertas relativas a uma nova terapia contra a malária". 

Incrivelmente, esta escolha deixou-me espantada; a mim que trabalho com parasitas, nomeadamente aquele que causa a malária, há mais de 20 anos. Sem dúvida que esta escolha é uma novidade a vários níveis. Depois de em 2014 o prémio ter sido atribuído a neurocientistas que descobriram as células do cérebro que nos permitem orientar no espaço, ou no ano anterior para o sistema de transporte celular. 

A verdade é que nos habituamos a que sejam premiadas descobertas científicas com extraordinário impacto no nosso conhecimento; ou seja, descobertas que mudam a nossa forma de descodificar a vida. No caso do prémio deste ano, premiaram-se soluções capazes de resolver um problema gravíssimo dos nossos tempos mas que não são por si descobertas científicas. Estima-se que os chamados parasitas nemátodes afetem um terço da população mundial, sobretudo na África subsariana, no Sul da Ásia e nas Américas Central e do Sul. Provocam a chamada "cegueira dos rios" bem como a elefantíase. A primeira, antes de levar à perda total da visão, causa uma comichão tão intensa pelo corpo todo que não é incomum ver pessoas com facas afiadas ou tijolos a arranhar-se constantemente durante horas, tentando procurar algum alívio. Já a elefantíase atinge cem milhões de pessoas e causa inchaços monstruosos e crónicos em diversas partes do corpo. Por outro lado, a malária causa quase um milhão de mortes todos os anos na grande maioria em crianças com menos de 5 anos. Os cientistas em questão foram premiados por revelar fármacos com impacto espantoso nestas doenças parasitárias, mas não por descobertas que representam um avanço no conhecimento científico ou na forma como estes parasitas causam doença.

Nada da história recente da atribuição do Nobel fazia prever que se regressasse aos tempos em que se atribuía o prémio à descoberta de um antibiótico, por exemplo. Como em 1939, quando o alemão Gerhard Domagk foi laureado pela descoberta das propriedades antibacterianas do prontosil, a primeira das sulfonamidas (o cientista não foi autorizado pela Alemanha a receber o prémio...).
Esta foi a minha primeira surpresa, que interpreto como um sinal inequívoco de mudança: a distinção de uma investigação direcionada ou aplicada. Mas outros aspectos tornam esta escolha surpreendente. Como o facto de ter sido premiado algo que tem impacto em populações e sociedades de uma parte do mundo que muitas vezes consideramos não ser a nossa. Será este um sinal de que começamos a compreender o mundo global onde vivemos e que os problemas dos outros são problemas de todos? Espero verdadeiramente que sim.

Finalmente, gostaria de chamar a atenção para um aspecto curioso relacionado com a forma como a terapia para combater a malária foi desenvolvida. Tu Youyou fazia parte de uma equipa do governo chinês liderado por Mao Tsé-Tung na década de 60 do século passado, que tinha por objectivo encontrar uma nova terapia para tratar a malária. Os medicamentos disponíveis contra a malária começavam a falhar devido a resistências do parasita contra esses mesmos fármacos. Mao ordenou a um grupo de cientistas que encontrassem uma solução. Tu Youyou foi a pessoa que realmente deu início a este projeto na China. A equipa decidiu voltar-se para a literatura chinesa da química medicinal - que é a química derivada de plantas, tratamentos com ervas - e identificou centenas de compostos que mostravam ter capacidade no alívio de febre. De seguida, começou a testar sistematicamente esses extratos vegetais e dessa forma surgiu a artemisinina, que é extremamente eficaz no tratamento da malária. A artemisinina é hoje responsável pela redução de metade do número de mortes por malária em todo o mundo. Algumas pessoas podem ter visto neste prémio um sinal de credibilidade e reconhecimento das terapias alternativas ou tradicionais. Mas é preciso notar que a descoberta só se tornou credível e válida depois de ter sido testada pelo método científico. 

Podemos perguntar-nos se o mesmo poderá acontecer com outros produtos. Sim, é possível, mas só se forem devidamente testados.

Também é curiosa a história da descoberta do medicamento estudado por Campbell e Omura, a avermectina - um derivado da qual, a ivermectina, permitiu reduzir drasticamente a incidência da cegueira dos rios e da elefantíase. Este produto já era amplamente usado em medicina veterinária e o que os dois cientistas fizeram foi testar a sua aplicação em humanos. "O tratamento tem tido tanto êxito, que estas doenças estão à beira da erradicação, o que seria um feito maior da huma-nidade", disse o Comité Nobel no comunicado de anúncio do prémio.

Apesar de eu ver em tudo isto um positivo sinal dos tempos, não posso deixar de ressalvar que continuamos a precisar da investigação chamada básica ou fundamental (aquela que produz novo conhecimento e que tenta saciar a nossa curiosidade) de a premiar e distinguir. Porque nunca se sabe de onde vem a solução para os grandes problemas da humanidade. O que hoje é tido como investigação fundamental, amanhã poderá ser a cura de uma doença grave. Só o futuro o dirá e não podemos virar-lhe as costas.

* Cientista, Directora Executiva do Instituto de Medicina Molecular.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/12/15

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