30/10/2015

DIANA RALHA

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Mãe

As mães ficam sempre de pé, como as árvores, cheias de raízes pelo mundo fora e brotam ramos, flores e frutos: a certa altura as mães são imortais.

É o que eu sou.
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É a característica que melhor me define.
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Sou feita de outras matérias que não apenas a matéria comum a todas as mães. Até porque não há uma mãe igual: as mães são todas diferentes, são únicas, seres incríveis e irrepetíveis.
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Sei fazer muitas outras coisas para além de ser mãe. Ser mãe nem é talvez a minha melhor característica; outros atributos tenho que domino com maior mestria e à vontade (as mães estão sempre em sobressalto e escrutínio público e privado; não há mãe nenhuma que diga de si própria que é a melhor do mundo).

Ser mãe de quatro sublimes criaturas não é um talento com o qual fui abençoada à nascença, se formos a acreditar nos contos e nas fadas que trazem na ponta das suas varinhas talentos variados aos berços das princesas recém-nascidas.

Não pude supor que a característica que melhor me viria a definir no futuro e por toda a minha vida fosse ser mãe. Não estava à espera e nem sei como isto me foi acontecer. Muito menos pude prever que aceitaria com uma alegria quase pateta este fabuloso destino, sabendo perfeitamente que nem é sequer a minha melhor característica, o mais brilhante dos talentos com os quais iria ou poderia dominar o mundo inteiro.

As mães são imperfeitas.

Nascem imperfeitas, são seres em permanente construção e reconstrução e andam nisto a vida toda, sem que a obra se dê por acabada.

As mães são todas feitas disto: eternas insatisfeitas, menosprezam tudo, feitos hercúleos e heróicos, não hesitam um momento que seja: seguem em piloto automático e trepam a montanha que se segue sem se terem dado ao luxo de recuperar o fôlego ou de ver a vista, porque há uma única coisa que as mães magnificam sem limites e para a qual vivem obcecadas: os seus filhos; os sonhos dos seus filhos.

Elas seguem a marcha ordeira das mães a vida inteira, e pelo caminho tratam de tudo o resto que não pode ficar para trás e vem atrelado, dificultando a jornada, mas tornando as mães cada vez mais fortes.

As mães ficam sempre de pé, como as árvores, cheias de raízes pelo mundo fora e brotam ramos, flores e frutos: a certa altura as mães são imortais.

Esta semana, a semana em que inauguro a minha crónica na VISÃO como ‘Especialista em Assuntos de Família’ (os Deuses só podem estar loucos e a Fada Madrinha que me tocou com a varinha num dia capicua de Julho sorri a um canto com orgulho e soberba) quase perdi a minha mãe.

Vi toda a minha vida a andar para trás; rebobinei tudo à porta do Hospital de Santa Maria: parti da estabilidade e felicidade em que me encontro orgulhosamente e depois recuei para as primeiras dores de crescimento, dei um salto para trás e revi a impetuosidade e arrogância da minha juventude, mais um passo de caranguejo e tropecei na imbecilidade da minha adolescência, e fui recuando, recuando até à menina doce, de tranças enormes e covinha na bochecha ao colo da minha mãe. Encolhi à porta dos Cuidados Intensivos do Santa Maria (outra mãe, a quem pedi com todas as minhas forças que salvasse a minha). Não envelheci esta semana: fiquei frágil, vulnerável, fiz-me outra vez criança de colo assustada.

A minha primeira crónica na VISÃO não estava pensada para ser sobre as mães. Sobre a minha Mãe.

Corresponderia ao desafio que a Direção da VISÃO me entregou, e que tanto me honra — pretendia falar sobre um tema da actualidade, cruzando-a com a amostra considerável de crianças que tenho lá em casas. Eu ia falar sobre os miúdos e a política, sobre como eles vivem o impasse político nacional e a crise económica e financeira durante a qual duplicámos o tamanho da prole, numa mistura explosiva de fertilidade e bancarrota que lhes tirou alguns luxos e parvoíces fabricadas na China, um tsunami demográfico numa família de classe média portuguesa que teve de se reinventar e rever todas as suas prioridades, que deixou de ser piegas e se fez à vida, conquistando coisas incríveis que dinheiro algum consegue comprar. Que nos trouxe até aqui, por exemplo, à Visão.

Esta seria uma crónica mordaz sobre esquerda, sobre direita, sobre o olhar lúcido e acutilante dos meus filhos mais velhos sobre as eleições legislativas e sobre o impasse político fascinante que enfrentamos.

Desculpem-me a interrupção, a crónica nos parâmetros ditos normais seguirá dentro de momentos.
Nenhuma filha, mesmo que ordenada mãe, está preparada para enfrentar, numa pega de caras, a mortalidade da sua mãe. Nenhuma filha, mesmo aquelas que já são mães, pode estar preparada para se tornar a mãe da sua mãe.

Aconteceu-me tudo isso esta semana.

A mãe que eu sou para os meus filhos é um projecto que tem pouco a ver comigo, com a minha vontade. Sou produto dos meus quatro filhos tão lindos e tão insuportáveis. A mãe que eu sou também nada tem a ver a mãe que a minha mãe é para mim.

Amor com amor se paga: eu mudei para todo o sempre a minha mãe e não satisfeita já é ela velhinha e eu mulher feita e continuo a obrigá-la a engolir as suas verdades, a vergar todas as suas convicções, a revirar-se do avesso porque assim a obrigo, a meu bel-prazer.

A minha mãe reprovou grande parte das minhas opções de vida: muitas vezes feriu-me deliberada e conscientemente, porque quis que eu fosse mais do que uma mãe. Achou em consciência que ser mãe não bastava, que não era o melhor para mim, uma mulher moderna, brilhante, com tantos e tão variados talentos.

As mães insistem até ao limite da quase ruptura, esticam a corda, usam truques baixos e jogadas rasteiras, porque têm de ter a certeza que os filhos estão seguros dos passos determinantes que vão dar na vida.

O que é que a minha mãe me ensinou neste ofício de ser mãe?

Ensinou-me a capitular.

As mães desistem pelos filhos. Só por eles morrem e só por eles desistem.

A luta é sangrenta, comigo foi; a minha mãe nunca me facilitou a vida: passou-me atestados de loucura e accionou o modo de emergência quando anunciei que ia ser mãe pela quarta vez, sem pôr em causa a continuidade de uma gravidez de alto risco não planeada. Disse-me coisas horríveis, testou-me e levou-me ao limite, e depois aceitou este meu e seu destino. Somos mães. É isso que somos.

Na manhã seguinte a sobreviver a um AVC, a minha mãe emudeceu, sem conseguir exprimir uma única palavra. Quando cheguei à primeira hora da visita à enfermaria dos cuidados especiais de Neurologia, já tinha arranjado maneira de explicar à equipa da urgência que tinha quatro netos. Tinha precisado as suas idades detalhadamente. E eu descobri que talvez haja uma coisa tão poderosa como ser mãe: as avós, parece-me, estão dispostas a renascer pelos netos.

E já agora, ainda que pela ordem inversa, vamos às apresentações: chamo-me Diana Ralha. Sou a mãe da Carolina, do António, da Aurora e da Isaura, diabretes deliciosos que são netos da Margarida Oliveira, a minha mãe.

[A minha mãe odeia literatura, abomina poesia e não vai ler esta crónica. Não faz mal: as mães nunca gostam de tributos, porque os filhos são o seu maior troféu, são a sua glória]

 IN "VISÃO"
24/10/15

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