20/09/2015

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ESTA SEMANA NA
"SÁBADO"

"Escolhi combater o Estado Islâmico"
 
No fim de Janeiro último, quando o autodenominado Estado Islâmico (EI) foi expulso da cidade síria de Kobane, junto à fronteira com a Turquia, Mário Nunes, 21 anos, tomou a decisão que ponderava há meses: ia desertar da Força Aérea (FA), onde tinha sido incorporado a 2 de Julho de 2012 e juntar-se à luta contra o maior grupo terrorista da História.
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Conhecia bem as consequências: em Portugal teria, no mínimo, um processo disciplinar na FA; no Curdistão iria arriscar a vida em combate e se fosse feito prisioneiro teria um destino terrível. Ainda assim, não hesitou. Seguindo as instruções que lhe foram transmitidas pela Internet, comprou um bilhete de avião só de ida para Sulaymaniyah, no Curdistão iraquiano. Inserido num grupo de voluntários, atravessou a fronteira com a Síria onde, a 10 de Fevereiro, concretizou o seu objectivo: aderir às Unidades de Protecção Popular (Yekineyen Parastina Gel, ou YPG, em curdo). Foi o primeiro português a fazê-lo.

Nos cinco meses anteriores, as YPG tinham-se tornado mundialmente famosas graças à resistência contra os jihadistas em Kobane e à promoção de valores ocidentais – como os direitos das mulheres, que se reflectiam na existência de unidades femininas. A página de Facebook Lions of Rojava tornou-se o estandarte do grupo nas redes sociais e um ponto de contacto para todos aqueles que, como Mário Nunes, queriam combater os islamitas.

Desde então que o grupo, o braço armado do Partido de União Democrática (Partiya Yekitiya Demokrat, ou PYD, em curdo), não tem parado de aumentar a sua zona de influência no Norte da Síria, para preocupação da Turquia: Ancara considera o PYD uma espécie de irmão gémeo do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (o PKK), organização classificada como terrorista pela União Europeia, Estados Unidos e pela própria Turquia.

Mário Nunes participou nessa libertação das zonas até aí dominadas pelo Estado Islâmico. O voluntário britânico Macer Gifford conheceu-o logo em Fevereiro. "Ele chegou, fez o treino e foi para a frente. Quando o conheci era uma figura selvagem, um tipo grande e forte que usava equipamento que tinha retirado aos soldados mortos do EI", conta à SÁBADO por Skype. "Na altura pensei: demorei um mês e meio a ver combates, a fazer alguma coisa e este tipo que chegou há duas semanas já entrou numa enorme batalha e está a construir uma reputação de combatente", continua o britânico.
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O TREINO MILITAR
Nos quatro meses seguintes esteve sempre na frente de combate. Fosse em ofensivas ou na defesa das localidades conquistadas. Na maioria das vezes a poucas centenas de metros de atiradores furtivos do EI. Nas pausas entre os combates faziam de tudo para passar o tempo. Jac Holmes, outro dos vários voluntários ocidentais que falaram com a SÁBADO recorda que o português era o melhor a costurar. "Chamávamos-lhe o alfaiate", conta.

Já Macer Gifford recorda as conversas que teve com Mário Nunes ao longo de dois meses. "Ele é um verdadeiro patriota. Viu as pessoas à volta dele a tomar por garantida a vida que têm e quis ajudar as pessoas na Síria que pediam os mesmos direitos", diz. Mais: "O EI colocou um alvo sobre Portugal e Espanha [o Al Andalus] e houve pelo menos um português que não ficou à espera que eles fossem ter com ele. Foi lutar. Admiro-o por isso."

No início de Junho deixou a Síria. Já estava em segurança num país europeu quando a Força Aérea publicou em Diário da República a decisão do seu processo disciplinar: "Cessação compulsiva do contrato." Esta semana, a FA garantiu à SÁBADO que não decorre "qualquer processo respeitante" a Mário Nunes que "já passou à situação de disponibilidade". Ao que a SÁBADO conseguiu apurar, no Ministério Público também não existe qualquer processo contra ele – ao contrário do que aconteceu com os portugueses que se juntaram ao EI. A explicação é simples: apesar da proximidade com o PKK, as YPG não são consideradas uma organização terrorista.

No entanto, nem isso fará Mário Nunes voltar a Portugal. Ao longo das últimas duas semanas explicou à SÁBADO, por escrito, os motivos que o levaram a desertar e partir para a Síria. Contou o que viu e como viveu nos quatro meses que passou na linha da frente contra os jihadistas e desmente várias informações publicadas na comunicação social – como o significado da tatuagem em árabe que tem no braço esquerdo.


Porque decidiu ir para a Síria e voluntariar-se para combater o EI?
Houve mais do que uma razão. Não consigo negar que a guerra me fascina. Talvez seja por influência do meu pai e dos meus tios, que estão quase todos na tropa ou nas forças de segurança. Sempre me interessei por história e esta foi uma oportunidade de fazer parte dela em vez de a ler num livro. Também senti que podia fazer a minha parte sendo o primeiro português a combater na Síria e fazer com que outros portugueses se preocupassem ao verem um deles a combater pelo lado certo e não pelo EI.

Houve algum acontecimento ou algo que tenha visto que o tenha feito tomar a decisão?

Sempre quis fazer algo que marcasse a diferença. Fosse contra o EI ou por outra causa que merecesse a minha atenção. Todos temos um dever para com o mundo. O meu foi este, que encontrei depois de Kobane, quando o mundo viu que não era impossível derrotar EI.

Foi a derrota deles em Kobane que o levou a ir?

Já pensava há muito tempo em fazer o que fiz. Mas foi com Kobane que conheci as YPG – e depois de alguma pesquisa encontrei os Lions of Rojava.

Mas o que o fez decidir arriscar a vida?

A hipótese de fazer aquilo que sempre quis. Não me vejo como um mercenário porque o dinheiro não é a minha motivação. Estou disposto a pegar numa arma para contribuir para um mundo melhor. Todas as pessoas escolhem como podem ajudar: com dinheiro, com voluntariado, a curar pessoas. Mas há aqueles que dão o sangue e se batem frente a frente com pessoas más.

Pegar numa arma para ajudar o mundo a ser um lugar melhor não é um bocado contraditório?

Não. Um processo de paz e sanções não teriam impedido os nazis de conquistar a Europa. Alguém tem de passar das palavras aos actos.

Sempre quis ser militar?

Desde pequeno que foi a única coisa que realmente desejei. Apesar de o meu pai nunca me ter incentivado a ir para a tropa, ele fez com que o desejasse através das histórias que me contava e de querer ser como ele.

Porquê a Força Aérea?

Simples: meti os papéis para o Exército e para a FA. Como foi a primeira a chamar-me e como os testes correram bem, decidi ir para lá.

O que fazia na FA?

Era empregado de mesa.

Abandonar a FA, desertar, foi uma decisão fácil?

Ao fim de quase três anos senti que a FA já não significava muito para mim. A tropa está cheia de hipocrisia. Já não se cultiva o privilégio e a honra de se ser militar. Passou a ser um trabalho como os outros, com camaradas e superiores apenas interessados em queixarem-se, apesar das regalias. Um oficial ou um sargento dos quadros tem a vida feita. Mas só ouvia queixas de quanto a vida é difícil. Na minha opinião para se ser militar bastava ter um quarto, três refeições por dia, água quente e roupa lavada. Foi por isso que saí. [No Curdistão] encontrei as dificuldades que um militar tem de enfrentar para se poder chamar verdadeiramente militar: quando colocamos o dever e a nossa honra em primeiro lugar, quando todas as dificuldades parecem poucas, quando sabemos que o que nos faz acordar de manhã é superior a todas as dores e desconfortos.

Falou com alguém sobre os seus planos?

Sim, mas não respondo a isso por privacidade.

Em 2014 esteve na Turquia. Foram apenas férias ou a viagem já estava relacionada com esta vontade?

O ano passado fui à Turquia por lazer. Depois fui a Erbil, no Curdistão iraquiano, para me juntar aos Peshmerga mas na altura recusaram-me. Gostei tanto de Erbil que passei lá uma semana. Conheci pessoas fantásticas e uma cidade espectacular. Acabei por fazer uma tatuagem, em árabe, que diz "um mundo, um povo". Mas quando desertei vi uma notícia sobre mim que dizia que a minha tatuagem significava "morte aos americanos" e que a fiz para despistar, o que é completamente idiota!

Porque não conseguiu juntar-se aos Peshmerga?

Não me disseram. Agora, porque arranjei contactos, se quiser posso ir.

Foi sozinho para Erbil?

Sim.

Como soube o que fazer para se juntar aos curdos?

Para ir para a Síria foi através da página de Facebook dos Lions of Rojava, onde me deram números de telefone. 
 
Viajei para Sulaymaniyah e aí levaram-me para uma casa onde formámos um grupo que depois foi transportado para uma localização não identificada nas montanhas, perto da fronteira com a Síria. Depois esperámos pelo dia em que era seguro atravessá-la.

As YPG financiam a viagem?
Não, temos de a pagar. Creio que me custou 563 euros só de ida.

Que trajecto seguiu?
Lisboa, Bremen, Frankfurt, Doha e Sulaymaniyah.

O que esperava encontrar quando lá chegasse?

Esperava mais acção. Os internacionais acabam por ser mais protegidos do que os curdos, que às vezes evitam pô-los onde sabem realmente que vai haver combate.

Pouco tempo depois de chegar entrou logo numa grande batalha. Pode descrever o que se passou?

No dia em que saí da academia os curdos atacaram uma localidade chamada Robaka. As YPG controlavam a colina no meio da vila e outra à saída da cidade. Entrei nesta segunda colina com um grande grupo de combatentes sob o fogo de morteiros que caíam muito próximo. De noite foi o inferno, com projécteis a voar por todos os lados. Infelizmente o meu grupo não atacou. Fiquei a defender a colina com várias pessoas e metralhadoras pesadas que davam fogo de cobertura. Dormi e fiz as necessidades com os projécteis a zumbir perto da minha orelha. Quando estava a dormir fui acordado por um curdo que tentou dizer-me através de gestos que vinha aí alguém, provavelmente um inimigo. Ele disparou para umas sombras que mal se viam. Pensei que estávamos a ser atacados pela retaguarda mas ele gritou e gritaram de volta e percebemos que eram das YPG. Quando o dia nasceu visitámos a vila e abundavam os corpos. Acho que o EI perdeu umas 11 pessoas e nós duas.

Em quantas batalhas participou?
Duas grandes. O resto foram escaramuças a proteger as vilas onde estávamos.

Em que consistiam essas escaramuças?
Às vezes eles tentavam atacar-nos. Os atiradores furtivos disparavam tiros de metralhadora ou morteiros ou RPGs. Tentavam entrar na nossa vila mas nunca conseguiram: nós tínhamos visão nocturna e térmica.

Foi ferido alguma vez?
Nunca.

Conseguiu perceber se matou alguém?

Não. De noite víamos os clarões e disparávamos. De dia atirávamos para onde ouvíamos barulho.

Para onde foi exactamente?
Estive sempre na linha da frente. Primeiro numa vila chamada Tal Juma, depois mudei de sítio algumas vezes na área de Tal Hamis e Tal Tamr.

Teve treino como os outros voluntários?

Passei duas semanas a receber treinos nas armas que iria usar: a AK-47, a espingarda de atirador Dragunov e a metralhadora PKC. Tivemos ainda umas horas de curdo.

Quantos estrangeiros encontrou?

Sei que havia mais, mas conheci uns 35.

A maioria também tem treino militar?

Acho que 70% dos voluntários já foram militares. Conheci ex-marines norte-americanos, ex-comandos do Reino Unido, ex-membros da Legião Estrangeira, etc.

Quais são os principais motivos que os levam para lá?

Acho que há três grandes grupos. O primeiro é altamente ideológico, socialista/comunista, dos que acham que em primeiro lugar está a revolução. Estão sempre a pregar contra o capitalismo e a superioridade da sua ideologia. O segundo é o daqueles que amam a Humanidade e cuja motivação é ajudar o próximo. 
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Não ficaram indiferentes às atrocidades do EI. Conheci um francês que morava perto do Charlie Hebdo e que depois do atentado sentiu que era o seu dever fazer alguma coisa. O terceiro grupo é o dos viciados em guerra. Veteranos do Afeganistão e do Iraque, principalmente. Alguns estão constantemente a procurar novas guerras. Mas todos foram para lá por um ideal, pelos jornalistas mortos e pelas atrocidades.

E foram dispostos a sacrificar-se por isso?

Claro que ninguém quer morrer, mas quando alguém decide ir combater para as YPG sabe que o pior pode acontecer. Mas mesmo quando falávamos da morte o espírito era sempre forte. Brincávamos com a situação.

Quais são as condições das YPG?

Podem ser bastante duras. Às vezes só é possível comer carne uma vez por semana. Em alguns sítios onde a água canalizada não chega é preciso esperar por água engarrafada, o que por vezes demora, sobretudo quando atacamos e a logística tem de seguir atrás. Na maioria dos dias o que comemos ao almoço é o que comemos ao jantar, mas a comida é deliciosa. Dormir em camas é raríssimo, temos um cobertor por baixo, outro por cima e sem almofada. Muitas vezes era complicado dormir com tiros a noite toda, mosquitos e chuva, apenas protegido por um muro de terra, a 300 ou 400 metros de distância de alguém que nos quer matar. Às vezes tínhamos que dormir fora da casa porque a localização era sensível. Não passei frio, mas houve vezes em que os cobertores ficavam ensopados.

Que material é que eles fornecem?
Quando o treino acaba, todos vão ao paiol buscar uma arma e granadas. Mas à medida que o tempo passa podemos acumular muitas mais. Seja porque as capturamos a inimigos mortos ou porque quando alguém regressa a casa deixa a sua arma. Cheguei a ver pessoas com três armas diferentes.

As YPG têm uma forte componente ideológica. Tentam transmiti-la aos estrangeiros?

Sim. E é aí que entra a hipocrisia. As YPG avançam rapidamente no terreno e não perdem tantos homens porque os aviões da coligação [internacional] estão constantemente a bombardear alvos e a fazer reconhecimento. Depois alguns elementos dizem-nos que os capitalistas são maus e que as FARC e a ETA é que são boas.

Como é que as YPG se organizam?

Havia grupos de 35/45 pessoas chamados tabour [unidades] que ficavam sempre juntos. Podem não ser os melhores combatentes, mas o espírito e o moral deles são imbatíveis.

A sua unidade era só de voluntários estrangeiros ou um misto com curdos?

O meu tabour tinha uns 10 internacionais e 30 curdos.

Tinha alguma função específica?

Não, era de infantaria.

Porque adoptou o nome de "Heval" [amigo] Kendal?

Foi o nome que me deram. Significa "desfiladeiro" ou "vale". No Curdistão todos os nomes têm um significado.

Os voluntários não recebem nada. Mas têm de levar dinheiro para viver?

Sim, os estrangeiros têm de levar o próprio dinheiro, mas não é preciso muito porque quase não temos despesas a não ser o custo do bilhete de avião. Muitos quando chegam ao Iraque investem em equipamento que as YPG não dão, como miras telescópicas, uniformes europeus, bons binóculos, painéis solares ou coletes de munições.

Foi o seu caso?

Não e arrependi-me. Não sabia a falta que me ia fazer. Eu tinha o uniforme da FA, que é melhor do que o das YPG e não o levei.
Se fosse ferido que género de apoio teria?
Apenas sei que há hospitais em funcionamento. Claro que ninguém paga o internamento e as YPG financiam a viagem de regresso ao país de origem.

Consegue descrever-me o seu dia-a-dia?

À noite era sobretudo a fazer vigilância. Os turnos tinham em média três horas e meia, mas dependia do número de pessoas. De dia tentávamos entreter-nos a limpar armas e munições, a melhorar o equipamento, a dormir, lavar a roupa, ler e conversar. Quando havia electricidade víamos televisão ou mexíamos no telemóvel. Às vezes íamos a uma cidade (normalmente Qamishli) por algumas horas comprar medicamentos ou fast food, que sabe maravilhosamente quando passamos meses a comer o que nos dão.

Ou o que encontrassem…

Quando havia logística, traziam-nos comida feita ou coisas para prepararmos. Mas quando parava de vir tínhamos que aguentar com o pouco que tínhamos e às vezes procurar nas casas abandonadas sal, açúcar, bulgur [alimento feito à base de trigo], esparguete, ovos, arroz…

Como cozinhavam?
Usávamos tudo o que encontrávamos. Isto não vai soar bonito mas sempre que alguém precisava de alguma coisa, fosse roupa ou medicamentos, tirava o que lhe apetecesse das casas. Especialmente das dos árabes, por quem os curdos não morrem de amores. Admito que quando precisei de roupa mais quente tirei e gostava sempre de ter medicamentos na mochila.

Alguma vez pensou "no que me vim meter"?

Quando estava no aeroporto falei com a minha namorada. Ela estava a implorar para não ir. Aí foi difícil. Mas quando cheguei foi fácil.

Teve medo?

Quando o projéctil faz um zumbido atrás da orelha, como um carro a passar muito rápido, isso significa que o tiro não passou muito longe. 
Quando ouvia esse barulho sabia que alguém tinha a mira em mim. Sim o medo existia por segundos. Mais do que medo, pavor. Mas era sempre substituído por adrenalina. Às vezes com a falta de combates nós ficávamos felizes por sermos atacados. Queríamos era acção.
Isso de querer acção parece um bocado de quem, mais do que lutar por um ideal, vai à aventura...

Acredito que muitos tivessem um ideal e outros não. Mas tínhamos em comum uma coisa: escolhemos combater para ajudar. Eu e eles preferíamos morrer ou sermos feridos a não fazer nada.
Alguma vez pensou "é desta, não me safo"?
Uma vez em Tal Juma houve uma troca de tiros intensa que durou umas 10 horas. Começou às tantas da manhã entre uma aldeia inimiga e uma posição amiga. Foi uma loucura: metralhadoras, morteiros, snipers, etc. Mas de repente eles começaram a disparar contra nós. Estava literalmente com a cabeça contra a terra, não podia mexer um músculo, porque sentia os projécteis a embaterem mesmo à minha frente. Ainda por cima era um projéctil explosivo, uma bala normal modificada que causa uma pequena explosão. Ao olhar para a aldeia inimiga via os clarões das armas. Foi um dia intenso.

Viu algum elemento do EI?

Vi mortos, abatidos por tiros, queimados por morteiros ou pela aviação. Também vi prisioneiros duas vezes.
Retirou-lhes muito equipamento?
Logo depois de ser colocado vi muitos mortos e tirei o que pude: munições, equipamento médico e armas. Vestuário não consegui porque já estavam em rigor mortis e muito sujos de sangue. Alguns traziam comida, sumos e latas de conserva, lanternas e blocos de notas.

Viu alguma atrocidade cometida por eles?

Não. Geralmente a linha da frente não tem civis. Todos saem das casas. É triste, eles têm de abandonar tudo e nós vemos a roupa, a mobília e as fotografias daqueles que já lá não moram.

Se tivesse de escolher uma situação marcante do tempo em que lá esteve, qual seria e porquê?

Foi quando tive finalmente a oportunidade de combater. Atacámos uma aldeia, um curdo foi ferido no pé quando estava a mudar de posição e ele foi retirado. Ganhámos a batalha com a ajuda da aviação que lançou bombas a menos de 80 metros. Foi uma loucura ver a pontaria da tecnologia dos aviões da coligação.

Perdeu amigos?

Sim, nunca perto de mim. O primeiro e mais marcante foi o Aryel, um iraniano com quem passei três semanas. Uma no Iraque, junto à fronteira à espera que ela abrisse e duas na academia das YPG. Separámo-nos no fim do treino e nunca mais nos voltámos a ver. Chorei com uma tristeza avassaladora quando soube da notícia.

Qual é a opinião dos curdos sobre os estrangeiros?

As opiniões dividem-se, porque todos os grupos são diferentes. O meu não começou bem. Quando estávamos em Tal Juma dois ex-marines americanos decidiram ir-se embora sem dizer nada a ninguém porque estavam aborrecidos. 
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Havia um inglês com um feitio terrível que uma vez quase provocou uma luta com um canadiano. Às vezes acusavam-nos de dormirmos durante a vigília. Mas o caso mais grave foi o de um americano passado da cabeça que, zangado, começou a disparar. Gastou quase dois carregadores. Os outros apontaram-lhe as armas e se ele se tivesse virado tinha sido o primeiro norte-americano morto na Síria – e ainda por cima por americanos.
Do que sentiu mais falta?

Uma sanita estava nos nossos pensamentos todos os dias. Ter um buraco no chão e água para nos lavarmos era muito estranho para nós. Sentia falta da minha namorada, claro. Os curdos são extremamente tímidos em relação ao sexo oposto. Uma vez estávamos a ver um filme ocidental e houve uma cena de um rabo seminu e o curdo desviou o olhar e corou. Havia duas coisas que nunca faltavam: tabaco e chá. Dizíamos que o chá é a Internet dos curdos, quando bebem não se passa mais nada no mundo. Chegou a um ponto em que já enjoava. Éramos convidados a beber uma vez por hora.

Quanto tempo lá esteve?

Uns quatro meses.

Porque decidiu vir embora?

Os curdos são pessoas boas e gentis para quem não contar a verdade é uma forma de ser socialmente educado. Mas isso deixava os estrangeiros extremamente frustrados. A minha equipa não foi colocada muitas vezes em combate. A juntar ao tédio e ao stresse, tinha contacto com a minha namorada através da Internet quando podíamos descansar em Qamishli. Chegámos à conclusão de que para combater tínhamos que esperar muito e não havia garantia de que iríamos participar numa batalha digna desse nome. Por causa disso a minha equipa saiu quase toda ao mesmo tempo.

Para sair de lá basta dizer "quero ir-me embora"?

Os estrangeiros podem sair quando quiserem. Pode é demorar a atravessar a fronteira por causa da burocracia entre as YPG e os Peshmerga. Depois há o problema dos vistos. Quando chegamos ao Iraque temos um visto de duas semanas que tem de ser prolongado. Mas como passei quatro meses sem o renovar não podia sair do país. Tive de passar muitas horas com a polícia curda para sair do Iraque…

Agradeceram-lhe por ter ido?

Quando saíamos da frente para descansar na cidade a população era muito curiosa. Oferecia-nos coisas e tentávamos estabelecer uma conversa com o pouco curdo que sabíamos. Estranhavam tantas pessoas brancas com o uniforme das YPG mas agradeciam estarmos a ajudá -las, sobretudo quando viajávamos nas pick up, amontoados como sardinhas, carregadas de pessoas e de material. Homens, mulheres e crianças levantavam-nos os dois dedos, que em curdo não significa apenas vitória. É uma forma de congratulação.

Teve problemas ao regressar à Europa?
Felizmente não e passei por vários aeroportos. Estava sempre com o coração nas mãos. Podia ter um mandado de captura. Cada vez que os funcionários falavam comigo ou os via a mexerem num computador estava à espera que me dissessem "o senhor vai ter que me acompanhar". Mas nunca verificaram os locais onde tinha estado, o que podia provocar muitas perguntas.

Pretende lá voltar?

O Curdistão ficou-me no coração. É uma terra linda com pessoas amáveis e generosas. Tem os confortos da vida moderna mas, por outro lado, parece que ficou parado no tempo. Não sei se daqui a uns meses ou anos, se na guerra ou em paz, mas sei que vou lá voltar, porque não me faltam boas memórias.

Mas também viu muitas coisas más…

Os cadáveres foram as coisas mais difíceis de ver. Pareciam bonecos roxos e verdes. Muitos pareciam gémeos.

Foi fácil voltar à "vida normal"?

Nunca é fácil porque a experiência é única e as amizades que fazemos são memoráveis. E o clima de acção é fantástico, não é comparável com nada que existe.

Acha que pode ter ficado com sequelas psicológicas?

Não. Tudo o que vi e senti ajudou-me a formar o meu carácter.

E pode ter-se tornado um viciado em guerra?
Se não estivesse com a minha namorada estaria lá. Acho que tenho um emprego normal, num sítio normal, porque namorar e fazer a guerra não coincidem. Sobretudo sei que a minha relação iria acabar se quisesse voltar.

* Sem palavras mas com admiração.

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