HOJE NO
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Veterinários.
Ordem inventa 150 novos especialistas
Os nomes foram escolhidos a dedo. A bastonária e outros 15 membros da Ordem auto-nomearam-se.
E, num instante, a Ordem dos Médicos Veterinários
(OMV) ganha 150 novos especialistas. Não é exagero, foi mesmo assim: a
bastonária nomeou-os um a um, sem critérios oficiais conhecidos. A
lista, que pode até já ter crescido, deve ser divulgada hoje no site de
Ordem. Dos 150 profissionais escolhidos por Laurentina Pedroso, cerca de
40 são docentes na UL, 16 são da ordem e apenas seis são especialistas
com formação reconhecida pelos organismos internacionais creditados para
o efeito.
Este “título”, tal como o regulamento da atribuição de
especialidade, é contestado em abaixo-assinado e vários médicos
veterinários alertam para o conflito de interesses na avaliação de
futuros especialistas. O próximo passo é o recurso aos tribunais.
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Há uma sensação de pressa na forma como o processo foi conduzido até
aqui. A bastonária, juntamente com alguns elementos da direcção, foi
elaborando a sua lista de “especialistas”. Os convites da OMV chegaram
aos médicos veterinários por email ou por telefone. Os contemplados
foram contactados, e os interessados passaram a engrossar o grupo de
privilegiados. Assim, sem mais.
A apresentação da casuística (a quantidade de casos atendidos no âmbito
da suposta área de especialidade), a entrega de currículos, da ficha de
auto-avaliação e mesmo a avaliação desses pressupostos pela comissão de
avaliação – tudo documentos considerados “obrigatórios” pela própria
Ordem – revelou-se secundária. Em vários casos, não foi preciso mais do
que um “sim, estou interessado” para aderir. “Estes pseudo especialistas
nomeados até podem ter anos de praça, mas se fosse feita uma auditoria
ia perceber-se que não enviaram sequer documentação”, diz sob anonimato
um especialista creditado pelo colégio europeu, que acompanhou todo o
processo. “Eu andei dez anos a operar 1000 e tal animais por ano para
depois receber um email a dizer que sou especialista?”, questiona-se
Luísa Mestrinho. “Não tenho nada contra as pessoas daquela lista e até
reconheço razões para aceitarem o convite – mas examinem-me, eu não
tenho medo de ser avaliada e os meus colegas, se não tiverem medo da
avaliação, estão do meu lado”, defende a médica do Hospital Escolar
Veterinário da Ajuda e ex-docente na Lusófona.
Travar o regulamento A confirmação chegou a 27 de Maio. Os
veterinários receberam uma email da Ordem (com uma “lista prévia de
especialistas OMV” em anexo) com os 150 nomes iniciais.
Seis deles são, de facto, especialistas – percorreram todas etapas dos
colégios internacionais (ver texto ao lado) e, no fim, foi-lhes entregue
o diploma. No grupo estão também 16 elementos da direcção da OMV,
incluindo a bastonária. Todos eles foram, por mera-autonomeação,
transformados em especialistas.
“A partir desta data todos os especialistas pela OMV, incluindo os
membros das Comissões de Avaliação, podem divulgar o título perante os
seus pares, clientes e sociedade”, lê-se no email.
Mais abaixo, um alerta: “Não atrase a sua candidatura por apreciação
curricular, possível até ao final de 2015. A partir de 2016, se a futura
direcção da OMV assim entender, o anexo ao Regulamento nº529/2014 pode
vir a ser modificado, tornando obrigatória a avaliação do candidato
através de exame/ prova pública.” Há mesmo pressa.
O problema – um dos problemas, aliás – é que estes títulos não têm
qualquer validade científica. Fora de Portugal, valem zero. E podem
mesmo trazer consequências para a credibilidade internacional da classe e
para os clientes que procurem os serviços dos especialistas.
“No limite, podemos estar a falar de uma fraude cometida contra os
clientes, porque os donos dos animais vão recorrer a supostos
especialistas que não o são”, considera Jorge Cid. Luísa Mestrinho
antecipa um cenário complicado. “Há uma falta de rigor na atribuição de
especialista para com o público e para com os animais, que são o mais
importante e temo que vão começar a surgir problemas de pessoas que se
dirigiram a um especialista que não fez o seu trabalho de especialista”,
admite a médica veterinária.
Com mais de três décadas de actividade como médico veterinário, Jorge
Cid recusou o convite que lhe foi feito para integrar a lista e pretende
“obrigar a bastonária a explicar porque fez isto e porque o fez a
correr”. O médico veterinário também procura as razões para tanta
pressa.
Há longos meses que um conjunto de veterinários pede à OMV a realização
de uma Assembleia Geral que inclua dois pontos na ordem de trabalhos:
anulação do “Regulamento Geral de Especialidades da Ordem dos Médicos
Veterinários” e dos títulos de “especialista” atribuídos
indiscriminadamente pela bastonária. O silêncio tem imperado.
A promessa chegou a ser feita numa reunião magna, tanto pela bastonária
como pelo presidente da Mesa. Mas, na prática, o máximo que se conseguiu
foi agendar um encontro com “carácter de esclarecimento” para este
sábado, dia 18 – ao contrário do habitual, a reunião foi agendada para
Coimbra e não em Lisboa, ficando assim um pouco mais longe do local onde
a esmagadora maioria destes profissionais exerce funções. “Hoje em dia,
põe-se em causa a própria legalidade do regulamento, pela forma como
foi conduzido, pelos pressupostos que inclui mas, ainda de muito mais
discutível legalidade, pela nomeação, num dia, de 150 especialistas sem
que saibamos o critério para que essas nomeações tenham sido feitas”,
refere Jorge Cid, director clínico do maior hospital veterinário do
país.
O médico é um dos quase 500 subscritores (cerca de 10% do universo de
veterinários) de um abaixo-assinado com que se pretende forçar a
bastonária a ouvir a classe sobre o regulamento de especialidades e os
graus já conferidos.
“Esta questão tem de ser submetida a apreciação da Assembleia-geral e a
uma votação democrática”, sublinha. Se as exigências não forem ouvidas,
os contestatários vão partir para o tribunal, e será um juiz a forçar o
encontro magno.
Afinal, qual é a pressa? A expressão tem conotação política, mas
serve ao caso. Olhando para a agenda dos próximos meses, fica mais clara
a razão para que se imprima velocidade ao processo.
O segundo mandato de Laurentina Pedroso termina em Novembro deste ano e,
impedida pelos estatutos, a bastonária não pode voltar a candidatar-se a
uma terceira ronda. Um pouco antes, em Setembro, a Universidade
Lusófona será alvo de uma visita da Comissão de Avaliação Externa da
A3ES – Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior.
E, ao contrário da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade de
Lisboa, o curso da ULusófona ainda não está acreditado pela agência de
acreditação de estabelecimentos de ensino veterinário.
Esse passo de Setembro é, por isso, importante para que a Universidade
conquiste valor de mercado, mas obriga ao cumprimento de regras
apertadas: entre outras, a formação do corpo docente.
Entre os 150 nomes da lista que emanou da direcção da OMV, quase 40
(24%) são docentes da do curso de Medicina Veterinária da UL – a
faculdade que Laurentina Pedroso dirige. A “especialização” destes
professores (num universo de pouco mais de 90 da instituição) representa
um importante contributo para a sua valorização externa.
Ao i, a Lusófona sublinha que a acreditação em curso “não tem qualquer
relacionamento com os processos de reconhecimento de especialistas
profissionais definidos pelas diferentes ordens”. A instituição
acrescenta que o curso de Medicina Veterinária “cumpre os requisitos
legais e os definidos pela A3ES respeitantes ao corpo docente bem como
restantes requisitos previstos na legislação para a acreditação de um
ciclo de estudo”.
O regulamento A Ordem dos Médicos Veterinários nunca teve
especialidades instituídas. Existe um esboço, mas o documento publicado
em Diário da República no ano passado vai muito mais longe que o
original.
Laurentina Pedroso lançou 17 especialidades (5 vezes e meia mais que o
texto anterior), e acrescentou a essa extensa lista outras 34
subespecialidades, que englobam uma infinidade de áreas de
aprofundamento de conhecimentos – algumas das quais sem paralelo no
contexto europeu ou americano.
Entre essas subcategorias estão as “áreas especificas” de Quiroprática e
Gestão – Farmacologia e Toxicologia Veterinária entrou directamente
para a categoria de especialidade. “A criação de um colégio de
especialidades faz todo o sentido numa ordem profissional da área das
ciências exactas, e isto já existe [noutros países], não é nada
inventado pela OMV”, lembra Luísa Mestrinho. “Mas há situações que não
são rigorosas na sua terminologia nem são baseadas na ciência”,
considera.
Além dessas originalidades, o regulamento cria outros problemas. Por
exemplo, no que diz respeito à comissão de avaliação (constituída em
cada momento para avaliar os futuros especialistas).
O diploma estabelece que será constituída pelo bastonário, um membro do
conselho directivo e dois do conselho deontológico, além de dois médicos
de reconhecido mérito. “Estamos a falar de um júri de seis elementos em
que quatro deles são da ordem”, destaca Luísa Mestrinhho.
Apesar dos insistentes contactos ao longo dos últimos dias, a bastonária
nunca se mostrou disponível para falar sobre este assunto.
* Estamos na república dos especialistas, a nossa mulher a dias foi nomeada especialista assistente de asseio e gestora de resíduos.
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