Olimpismo e
Cultura de Participação
É deveras preocupante que, na República do 25 de
Abril, possa ser produzido para o desporto um documento ao estilo
“magister dixit” que ousa quebrar uma tradição de participação
democrática que vinda do tempo da Monarquia, passou pela 1ª República e
raras vezes o regime do Estado Novo ousou quebrar.
O desporto,
de alguma maneira, sempre foi um espaço consentido de democracia e
participação. Não faltam exemplos a confirmar essa cultura confirmada
por jornais e revistas como a “Tiro e Sport” ou “Os Sports Ilustrados”
de finais do século XIX princípios do século XX até ao atual desportivo
“A Bola” que, de uma maneira geral, no seu momento, sempre foram espaços
de livre pensamento no panorama do desporto nacional. Mas também por
diversos clubes como a Real Associação Naval e o Real Ginásio Clube
Português ou, entre outros, o atual SL e Benfica que, em muitas
circunstâncias, pelo exemplo da sua vida associativa, acabaram por ser
escolas de aprendizagem democrática uma vez que, muitas vezes, dos
poucos sítios onde a democracia podia ser exercida era nos clubes
desportivos.
Não há desenvolvimento sem participação das pessoas
na medida em que são as necessidades e expectativas das populações que
devem orientar os critérios de decisão daqueles a quem a democracia,
circunstancialmente, outorga essa competência. Considerando as
perspetivas mais intervencionistas de Amartya Sen centradas no princípio
da igualdade que, à partida, deve orientar a ação do Estado, bem como
as perspetivas mais liberais expressas por John Rawls centradas no
princípio da equidade que condiciona a livre iniciativa das pessoas, o
envolvimento das populações é condição sine qua non de qualquer
processo de desenvolvimento. Quer dizer, não se trata de saber se as
populações interessadas vão ser informadas e envolvidas, mas como é que
elas vão ser informadas e envolvidas uma vez que, nas sociedades
modernas e democráticas, a necessidade de envolver as pessoas nas
questões que têm diretamente a ver com a sua vida ou a vida das
organizações de que fazem parte, é uma questão adquirida.
Mas um
modelo democrático de desenvolvimento em que a participação das pessoas
é uma questão central obriga a um sistema de informação consequente,
quer dizer, que atinja e mobilize a generalidade dos interessados. Por
isso, ao longo dos mais de cento e vinte anos do desporto moderno, a
comunicação social tem tido um papel primordial uma vez que os
jornalistas, com as suas notícias e as suas prosas, nas mais diversas
circunstâncias e em múltiplas ocasiões, têm dado uma dignidade histórica
ao desporto sem a qual ele fica reduzido a uma atividade sem sentido
social. Aquilo que hoje se conhece do desenvolvimento do desporto
português de finais do século XIX princípios do século XX, em grande
medida, fica-se a dever, primeiro à intervenção e, depois, à memória
preservada pelos jornais. É ela que tem garantido a organização do
futuro.
Assim sendo, se existe aspeto que qualquer processo de
desenvolvimento deve dispensar é a sua apropriação por alguém que se
julga suficientemente iluminado para, de modo próprio e numa dinâmica
autocrática, determinar do futuro coletivo de terceiros. Porque,
enquanto projeto de mudança e de progresso, o desenvolvimento não
dispensa o envolvimento democrático das populações atingidas e
interessadas de maneira a que, pelo efeito catalítico provocado pela
comunicação social, elas possam tomar nas suas mãos a construção do seu
próprio destino.
Em Portugal, de uma maneira geral, o
desenvolvimento do desporto sempre esteve envolvido numa cultura de
participação em que os procedimentos de ordem democrática têm feito
parte do comportamento dos seus promotores. Por exemplo, a fim de se
organizar a Missão portuguesa que havia de participar nos Jogos
Olímpicos (JO) de Estocolmo (1912), a 30 de Abril de 1912 foi fundado o
Comité Olímpico Português o que aconteceu através de uma reunião marcada
especificamente para o efeito onde participaram delegados de clubes,
jornalistas e membros da Comissão de Desportos da Sociedade Promotora da
Educação Física Nacional que funcionava como uma espécie de
superestrutura do desporto. Depois, a população portuguesa, sobretudo a
de Lisboa, foi envolvida na angariação de fundos a fim de suportar as
despesas da Missão portuguesa a Estocolmo. Ainda na 1ª República, foram
várias as vezes que o COP foi chamado a participar na organização do
desporto nacional. Já na 2ª República, quando em meados dos anos trinta o
Estado Novo resolveu intervir no desporto, Oliveira Salazar só o fez
depois das figuras públicas mais prestigiadas do desporto nacional o
terem solicitado a partir das decisões que decorreram do Primeiro
Congresso dos Clubes Desportivos realizado em 1933. E, anos mais tarde,
quando arrancaram no País os designados Planos de Fomento, o desporto
civil não deixou de ser chamado a participar nos trabalhos do II Plano
de Fomento desencadeado em 1963 no âmbito do Ministério da Educação.
Então,
foi ordenado pelo Ministro Inocêncio Galvão Telles a elaboração de um
Plano de Fomento Gimnodesportivo cujo relator foi Prostes da Fonseca. Da
sua equipa faziam parte os Professores de Educação Física Américo José
Nunes da Costa; Eduardo Pimentel Trigo; Manuel Meneses de Morais. Mas
não só na medida em que, entre entidades públicas e privadas, a título
individual ou em representação, intervieram ainda nomes tão diversos do
ponto de vista profissional e político como, entre outros, Celestino
Marques Pereira; Nelson Mendes; Francisco Nobre Guedes (ao tempo
vice-presidente do COP); António Lopes Jonet; José Maria Noronha Feio;
José Esteves; José Teotónio Lima; Tibério Antunes; Vasco Pinto
Magalhães; ou Armando Rocha, ao tempo, Diretor-geral da Educação Física,
Desportos e Saúde Escolar. Note-se que, entre os referidos nomes,
podemos ver personalidades tão distantes quanto, do ponto de vista
político-ideológico, o foram Nobre Guedes e José Esteves ou, do ponto de
vista epistemológico, Celestino Marques Pereira e Nelson Mendes.
A
cultura de participação, enquanto predicado de uma conceção democrática
de desenvolvimento do desporto que, na tradição do pensamento de Pierre
de Coubertin, pontuou no País, foi reforçada e cultivada a partir do 25
de Abril desde logo através de um debate alargado sobre o
desenvolvimento do desporto nacional promovido nas páginas do Jornal “A
Bola” em que participaram variadas figuras do desporto português.
Depois, a elaboração dos chamados Planos de Desenvolvimento (por
modalidade desportiva) sob a liderança de Melo de Carvalho colocaram de
uma forma empenhada, a sociedade portuguesa a discutir as diversas
modalidades desportivas no quadro do desenvolvimento do desporto
nacional. O Encontro Nacional do Desporto (ENDO) foi o ponto alto de um
processo que havia de mudar a face do desporto na 3ª República.
Mais
tarde, ao tempo do Primeiro Governo Constitucional foi nomeada por
Sottomayor Cardia, Ministro da Educação, uma comissão encarregada de
concretizar a política desportiva do Programa do Governo, da qual faziam
parte nomes como José Esteves, Mário Moniz Pereira, Henrique Reis Pinto
e Arcelino Mirandela da Costa. A partir de então, produziram-se
diversos documentos de enquadramento do desporto nacional e as suas
perspetivas de futuro que, salvo uma ou outra exceção, nunca dispensaram
uma participação mais ou menos alargada não só dos interessados bem
como daqueles a quem os planos se destinavam. Mais recentemente, até
Laurentino Dias, com aquele seu jeito que faz lembrar a metáfora do
elefante na loja de cristais, quando no XVII Governo Constitucional
organizou um Congresso do Desporto, não deixou de garantir uma certa
participação democrática fim de que as conclusões do Congresso
expressassem um certo sentimento das gentes do desporto.
Por
isso, em face daquilo que aconteceu ao longo dos mais de cento e vinte
anos de desporto moderno em Portugal, o documento emanado do COP sob o
título “Valorizar e Afirmar Socialmente o Desporto: Um Desígnio
Nacional” surgiu na sociedade portuguesa de uma forma inadmissível
porque à revelia da tradição de uma significativa participação
democrática que tem caracterizado a vida desportiva nacional. Quer
dizer, nasceu ignorando as mais diversas entidades individuais e
coletivas, públicas e privadas, externas e internas, desportivas ou
para-desportivas a começar pela própria Comissão de Orientação
Estratégica (COE) do COP. Esta, formada, entre outros, pelos presidentes
de todas as Federações Desportivas, embora seja “um fórum de discussão e
crítica sobre os eixos de orientação estratégica nas questões ligadas
ao cumprimento da missão e finalidades do COP”, não foi sequer ouvida em
tempo útil.
Em conformidade, são preocupantes as relações que o
COP, contra a história, está a estabelecer com a sociedade portuguesa.
Primeiro, fecha-se sobre si próprio num Congresso Nacional Olímpico ao
estilo de uma “missa cantada” cujos trabalhos, numa desconcertante
ambiguidade práxica, se subordinaram ao tema: "Pensar o Olimpismo - Um
Testemunho para o Futuro". Depois, produz o documento “Valorizar e
Afirmar Socialmente o Desporto: Um Desígnio Nacional” que, à revelia do
Movimento Desportivo (MD), numa espécie “evangelização desportiva” dos
Senhores Deputados, é apresentado aos grupos parlamentares dos diversos
Partidos com assento na Assembleia da República, assim como que a
pretender conquistar “na secretaria” um estatuto democrático que não se
importou em obter no quadro das relações pessoais e institucionais que
deve respeitar no seio das mais diversas forças que interagem no MD.
Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana
IN "BOLA"
24/05/15
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