28/05/2015

DANIEL ADRIÃO

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Do homo economicus 
ao homo miserabilis

Mais do que um programa político, a actual maioria de direita pôs em prática um programa ideológico. Uma estratégia preparada e executada com enorme frieza e que teve como objectivo transformar Portugal num laboratório de experimentação social segundo a fórmula neoliberal. O objectivo era criar um novo homo economicus, mas a experiência correu mal e degenerou num homo miserabilis. O feitiço virou-se contra "o aprendiz de feiticeiro".

Ninguém até agora revelou inside information tão preciosa e credível sobre os planos e os agentes que estiveram por detrás da intervenção da troika em Portugal como o militante do CDS António Lobo Xavier. Aconteceu há sensivelmente dois anos, mais precisamente no dia 16 de Maio de 2013, no programa Quadratura do Círculo. Lobo Xavier revelou, de viva voz, a estratégia oculta que determinou o pedido de resgate, ao reconhecer que a "fina" Sra. Merkel não queria que Portugal assinasse um Memorando de Entendimento e se sujeitasse à intervenção externa de uma troika de credores, abrindo caminho a um protetorado financeiro que «saía fora de controlo».

Vale a pena transcrever textualmente as palavras de Lobo Xavier, porque elas constituem, em si mesmo, um precioso testemunho histórico à cerca do plano maquiavélico que esteve subjacente ao pedido de resgate e à entrada da troika em Portugal em 2011.

Diz Lobo Xavier: «No princípio a Sra. Merkel não queria uma intervenção concertada, regulada, com um memorando. A Sra. Merkel não queria este aparato formal de memorandos, com regras, promessas, compromissos e tudo medido à lupa. Não queria. A Sra. Merkel não queria. Veja em Espanha, não há problema nenhum. Estão numa situação de resgate, na verdade. E não há problema nenhum. Não há avaliações, não há ameaças, não há cumprimentos, não há nada». E Lobo Xavier prossegue o seu relato pungente, perante o olhar incrédulo do então colega de debate semanal e actual líder do PS António Costa: «Este formato saiu do controlo. A Sra. Merkel não queria. E porquê? Porque tudo o que seja formatar e pôr funcionários a cumprir regras e palavras escritas em papel duro, a negrito, tira sempre margem de flexibilidade. E depois, por muito que as pessoas queiram flexibilizar e não cumprir regras e assobiar para o lado, estão as coisas no papel. Isto saiu do controlo, este formato saiu do controlo». E prosseguiu na sua explicação: «É muito difícil ser flexível. E temos de passar por este calvário porque as coisas não se podem resolver num gabinete com pequenas conversas. Tem este aparato público, tem textos, tem instituições que se controlam umas às outras. Isto sai fora do controlo dos próprios mandantes. Se isto fosse controlado apenas com conversas na Comissão, ou com conversas no Banco Central Europeu, ou mesmo no gabinete da chanceler, isto corria de outra forma.». Ao longo da sua confissão, Lobo Xavier não mostra ter dúvidas sobre quem são, de facto, os responsáveis pela entrada da troika em Portugal, em resultado de uma acção, que reconhece, foi concertada e desencadeada «pelo PSD e também pelo CDS», e que o levam a concluir, que o primeiro-ministro se comportou como um "aprendiz de feiticeiro".     

Curiosamente, dois anos depois, o vídeo no Youtube com as abrasivas declarações de Lobo Xavier tem escassos milhares de visualizações, o que diz muito da incompetência do PS na desconstrução da narrativa fabricada pela direita sobre a intervenção estrangeira e que tem constituído o principal lead do seu guião político em defesa da inevitabilidade das políticas de austeridade.

Recorde-se que tudo começa quando o PSD e o CDS, com a cumplicidade da esquerda fixista e radical, decide chumbar o último dos PEC, que tal como os anteriores havia sido negociado com o apoio da Sra. Merkel. A seguir, os deuses conspiram de forma a provocar uma tempestade perfeita: agências de rating, banqueiros, parceiros sociais, jornalistas, comentadores e oposição formam uma frente comum a favor da intervenção externa. O pressionável ministro das Finanças Teixeira dos Santos não resiste e precipita-se a anunciar o pedido de resgate, contra a vontade da Sra. Merkel e do próprio primeiro-ministro José Sócrates, que ainda acreditava numa solução na 25ª hora. Traído e vencido pelas circunstâncias, não resta alternativa a Sócrates senão "mandar a toalha ao chão" e formalizar dois pedidos: o pedido de resgate e o pedido de demissão. Abrindo, assim, caminho para a direita concretizar um velho sonho que perseguia desde os tempos de Sá Carneiro: "uma maioria, um governo, um presidente".

A chegada da troika oferecia à coligação de direita o argumentum ad metum (argumento pelo medo) que Passos Coelho necessitava para levar por diante um dos mais radicais planos neoliberais que há memória na Europa continental. A estratégia de intimidação da opinião pública tinha atingido tais proporções, que Passos Coelho até se pôde dar ao luxo de proclamar como grande desígnio nacional, quase em tom épico, ir além troika.

O objectivo era pôr em marcha um plano de austeridade cego, que o mago das Finanças Vitor Gaspar jurava ter propriedades expansionistas. Neste cenário dantesco, o FMI e o BCE eram peças imprescindíveis na tarefa de ajudar o governo a executar o seu plano de "ajustamento", não apenas económico, mas também social, prosseguindo um projecto ideológico, que buscava uma alteração profunda das estruturas da sociedade e a execução de um plano de reengenharia social. O objectivo era expurgar o país de quaisquer resquícios de "hedonismo" e formatar os portugueses de acordo com um modelo de racionalidade económica baseado no sacrifício, na modéstia e na frugalidade, gerando um novo espécime humano: o homo economicus. Um tipo de português que devia adquirir hábitos espartanos e viver de acordo com as suas possibilidades, naturalmente, cada vez mais exíguas.

Segundo a visão linear dos ideólogos do neoliberalismo lusitano, depois de um regime que durante meio século pregou as virtudes da poupança, do "pobre mas honrado" e dos "cofres cheios", chegou o regime do despesismo, do "bodo aos pobres" e do "fartar vilanagem". Estavam, pois, criadas as condições para fazer a defesa de um regresso aos valores pátrios inscritos na cartilha conservadora, revista e actualizada à luz da doutrina neoliberal. Na mesma linha ideológica do célebre discurso do "back to basics", do ex-primeiro-ministro conservador da era pós-Thatcher, John Major, que em 1993, afirmou: «É tempo de regressar aos valores tradicionais, é tempo de ir "back to basics": da autodisciplina e do respeito pela lei, da consideração pelos outros, de aceitar as nossas próprias responsabilidades e as das nossas famílias e de não as empurrar para cima do Estado.».

O resultado da "diabolização" do Estado e da crença cega no individualismo e na auto-suficiência, conduziu a um mundo cada vez mais iníquo e desigual. Um por cento da população mundial está muito perto de ter mais dinheiro e riqueza do que os restantes 99%. E o mais chocante é que essa diferença agravou-se em 50% desde 2010.

Portugal infelizmente não fugiu a esta regra. O fosso entre ricos e pobres em Portugal aumenta há cinco anos consecutivos. Segundo dados da Cáritas, há hoje em Portugal 3 milhões de pobres. E segundo dados do INE, há 4 milhões e trezentos mil portugueses que vivem em privação material severa, isto é, não conseguem, por exemplo, pagar rendas em atraso, manter a casa aquecida ou fazer uma refeição de carne ou de peixe de dois em dois dias.

Moral da história dos últimos 4 anos de governo de direita: o feitiço neoliberal virou-se contra o "aprendiz de feiticeiro" e o homo economicus degenerou no homo miserabilis. 

* Militante do PS e promotor do Manifesto "Primárias já!". 
É Especialista em Comunicação.

IN "SÁBADO"
26/05715

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