13/04/2015

TERESA DE SOUSA

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O PS e o populismo 
soft de Nóvoa

O único erro que António Costa não pode cometer é fazer promessas que não possa cumprir nos actuais condicionalismos europeus.

1. Se alguém não tivesse percebido o significado da candidatura de Sampaio da Nóvoa a Belém, bastou-lhe ouvir no domingo passado as palavras de Marcelo Rebelo de Sousa na TVI.

Com uma “perversidade” inigualável (a palavra não tem sentido pejorativo), Marcelo disse que era um excelente candidato para unir toda esquerda – do PS à esquerda radical. Percebe-se porquê. Sampaio da Nóvoa é a melhor garantia de que a sua candidatura a Belém se transformaria, muito provavelmente, num passeio tranquilo. O antigo líder do PSD só vai decidir sobre a sua candidatura depois das legislativas. Não perderia por nada no mundo a sua pregação dominical que bate todos os recordes de audiência (mérito dele). Mas também lhe dá jeito esperar pelos resultados das legislativas. Passos Coelho pode ser contra a sua candidatura. Mas, tal como António Costa, há realidades que o transcendem. Além disso, se o PSD ganhar as eleições (e, numa crise à dimensão da que vivemos por cá e na Europa, tudo pode acontecer), a sua capacidade de impor um candidato aumentaria bastante.
Marcelo sabe o que significa a candidatura de Nóvoa. É um candidato que agrada à esquerda do PS e à esquerda radical. E é justamente por isso que muito dificilmente ganhará eleições que se decidem no eleitorado central. O seu problema não é o de ser desconhecido, coisa que o PS resolveria facilmente se fosse o seu candidato. O seu problema é que a esquerda à esquerda do PS vale realmente muito pouco (à excepção do PCP, que sai fora desta lógica). O BE é liderado por seis pessoas, cada uma representando uma tendência que, por sua vez, deve incluir umas dez pessoas, e falta-lhe o Tsipras lusitano (e a realidade da Grécia) para unificar as infinitas fracções e os exacerbados egos que o caracterizam. O Livre, o Agir e o Tempo de Avançar, com algumas excepções (aqueles que não andam pelas televisões), reflectem a ambição de meia dúzia de protagonistas que se vêem a si próprios como únicos e imprescindíveis. Somados, valem muito pouco.

2. A entourage de Sampaio da Nóvoa já percebeu que não pode deixar que se lhe cole à pele esta imagem demasiado esquerdista. Vai tentar apresentá-lo como uma espécie de “Podemos solitário”, nem de direita nem de esquerda, pairando acima dos partidos numa retórica de “a gente contra a casta” à portuguesa. A sua identificação com Eanes e com o seu “despojamento”, é uma espécie de gato escondido com o rabo de fora. Mas também representa o último protesto de uma esquerda que, depois do 25 de Abril, e sobretudo depois da eleição de Mário Soares em 1986, sempre se sentiu traída pelo PS e pela sua governação ao centro.

Ramalho Eanes, hoje uma figura respeitável, tentou decapitar o PS (e, já agora, o PSD de Sá Carneiro), com a criação de um partido político de inspiração mais ou menos terceiro-mundista, destinado a “moralizar” a política portuguesa. O destino do país podia ter sido outro, muito diferente (e muito pior), quando, na primeira volta das presidenciais, essa esquerda eanista utilizou a ruptura entre Mário Soares e Salgado Zenha para ajustar contas com o líder socialista. A popularidade de Soares (depois do programa de austeridade imposto pelo FMI que teve de aplicar) estava próxima de zero, levando toda a gente a acreditar que seria um alvo muito fácil de abater. A primeira volta foi uma luta brutal sobre o destino da esquerda democrática portuguesa, que felizmente Soares conseguiu resolver por muitos e muitos anos.
Com a crise, voltamos a um cenário idêntico com outros protagonistas incomparavelmente piores e em circunstâncias que, verdadeiramente, estão a pôr à prova as democracias europeias. O que, em 1986, podia ter sido uma tragédia (ou uma perda de tempo) no caminho para uma democracia ocidental, ou seja, sem adjectivos, pode vir a ser agora uma triste comédia. Os apoiantes de Sampaio da Nóvoa acreditam que este poderá mobilizar movimentos sociais e políticos que atravessam o país sem encontrar expressão nos partidos do sistema, que ele será o candidato dos patriotas e dos que querem devolver a dignidade ao país e ao povo. Mas sobre o que pensa o candidato das questões que ditarão o nosso destino, ninguém sabe. O que pensa da Europa, da economia, da reforma do Estado Social, do euro? Não sabemos. “Chegou o tempo de mudar de tempo” pode soar bem mas não quer dizer rigorosamente nada.

3. O segundo duche frio para os socialistas foi o anúncio (já esperado mas, compreensivelmente, ainda não interiorizado) de António Guterres. Temos de ouvir o que Marcelo vai dizer logo à noite embora, neste caso, as suas palavras possam ser menos “perversas” e mais sinceras. Com Sampaio da Nóvoa e sem Guterres, pode dizer-se que está em maré de sorte mas esta não é toda a história. Ele e Guterres repartiram entre si, ainda antes do 25 de Abril, o estatuto de mentes mais brilhantes da sua geração, ambos são católicos praticantes, ambos sempre tiveram preocupações sociais. Guterres governou quando Marcelo era o líder do PSD e lhe fez algumas “partidas” altamente inconvenientes como o referendo sobre o aborto. Mas enquanto foi preciso cumprir as regras de Maastricht para entrarmos no euro, garantiu a aprovação dos Orçamentos necessários. Guterres foi líder socialista, primeiro-ministro, protagonista destacado no Conselho Europeu, amigo de uma geração de líderes mundiais de centro-esquerda de grande projecção. Foi-lhe oferecida de bandeja a presidência da Comissão Europeia, que rejeitou. Desempenha há quase dez anos as funções de Alto Comissário da ONU para os Refugiados, num tempo tremendo de desgraça humana, com determinação e eficácia. Não pretende voltar à política portuguesa, o que se compreende, mesmo deixando António Costa numa posição difícil. Marcelo, penso eu, não desgostaria de travar a batalha com alguém que vê ao seu nível intelectual. Perder com ele seria a única derrota que não lhe atingiria excessivamente ego.

Desde que foi publicamente conhecida a decisão de Guterres, a direita lançou-se num coro de lamentações hipócritas e os socialistas ficaram sem nada para dizer e, consequentemente, começaram a disparar para todos os lados. Jaime Gama também não será candidato por razões absolutamente irrevogáveis: precisa de tratar dos netos. Depois de uma grande carreira política e com a política no estado em que está, percebe-se. Vitorino organizou a sua vida profissional como advogado, quando saiu de comissário, mantendo apenas a sua militância europeia dentro e fora de portas, onde a sua opinião ainda tem imenso valor. Nenhum deles se sujeitaria, creio eu, a um debate público hipermediatizado, onde não há tempo para respirar e onde os pequenos, médios e grandes escândalos se sucedem a uma velocidade alucinante.

Esta histeria presidencial que dificulta a vida ao líder do PS acabará por desaparecer, permitindo-lhe regressar ao seu calendário político para as legislativas. Toda a gente o critica por andar preocupado com o “quadro macroeconómico” do país e com um programa que ninguém vai ler. Se bem percebo, o quadro macroeconómico é necessário para avaliar a margem de manobra de um governo socialista para desenvolver políticas diferentes das que foram imposta pela troika e que o Governo aplicou diligentemente. Creio que o único erro que António Costa não pode cometer, porque esse sim seria trágico para o país, é fazer promessas que não possa cumprir nos actuais condicionalismos europeus. Aí sim, correríamos o risco de abrir as portas aos Podemos, aos Syriza (embora sejam movimentos de natureza diferente) ou ao populismo soft de Nóvoa.

IN "PÚBLICO"
12/04/15

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