18/04/2015

MANUEL SÉRGIO

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O Progresso Desportivo:
 - o que é isso?

Eu não sei se vou expor-me à troça dos especialistas, ao levantar a interrogação: o que é o progresso desportivo? Todos o sabem. Aumenta o número de praticantes, no lazer e na escola e no desporto federado; constrói-se um número razoável de recintos sócio-desportivos, devidamente apetrechados; na alta competição, conseguem-se marcas admiráveis e um rendimento surpreendente; o Governo canaliza verbas (gordas verbas!) para o Comité Olímpico e as Federações, ainda o Governo concebe e determina, em colaboração com a universidade, um plano de formação para técnicos do desporto escolar e técnicos do alto rendimento; estimula-se o associativismo local; apetrecham-se os Centros de Medicina Desportiva, com recursos humanos e materiais, à luz das exigências das mais recentes aquisições do conhecimento; , criam-se centros desportivos regionais e de alta competição – e ninguém tem dúvida em jurar convictamente que o progresso desportivo se iniciou e, mais tarde ou mais cedo, apresentará força interna e representatividade externa. No entanto, eu peço licença para contrapor, sem receio, que a tese mete água por alguns buracos. E nem me dou ao trabalho, para não tornar agressiva e polémica a minha prosa, de pôr a nu os dislates que sobre o assunto se cometem, até por pessoas que vivem no seio mesmo do fenómeno desportivo e que se distinguem por conhecimentos de boa valia técnica. Um parêntese, se me permitem – se o Desporto só se resume aos publicitados e fulgurantes desempenhos do rendimento físico; se nele não há nada se subversão cultural, de indomesticável liberdade política, de signo atuante de uma contestação radical da socioedade tecnocrática do rendimento; se o Desporto é só negócio, como uma copiosa galeria de bem-pensantes congemina – o praticante não passa de uma besta esplêndida e os espectadores de robots, ao serviço da economia de mercado (e não de uma economia com mercado) que aí está.

Mas (voltemos à interrogação inicial): o que é isso de progresso desportivo? Comecemos por dizer o que ele não é, fundamentalmente. Como já dei a entender, linhas atrás: não se limita ao crescimento do número de praticantes; nem à consecução de espantosas aptidões e habilidades físicas; nem ao aumento visível do número de espectadores apaixonados. De facto, o progresso desportivo, se é isto, não é só isto. Porque, no meu entender, só há progresso desportivo, quando a qualidade preside à quantidade, quando ao ter se antepõe o ser. O que vale dizer que o problema crucial em que o Desporto se debate não está na opção entre continuar ou impedir o progresso que aí está, mas em orientá-lo noutra direção. Para alguns (e são demasiados e... ruidosos) o motor do progresso desportivo reside na competição desenfreada, na rivalidade sem freios, no desejo implacável de domínio. É preciso vencer (e de qualquer maneira) e ficam aproblemáticos por aí. E, porque tudo se passa a este nível de evidente primarismo, não vão além do quadriculado do físico, da técnica e da tática, dando ao desprezo o conhecimento científico e o filosófico. O Desporto parece assim uma enorme oficina onde se cura dos “agentes do desporto” como de máquinas e onde tudo se subordina às exigências de economia de mercado (e não à economia com mercado) e portanto em que o equilíbrio dos egoísmos privados, “numa concorrência desenfreada, tenha de ser a última palavra”. É por demais claro que só por enternecedora inocência, ou por ignorância crassa, seria lícito proclamar-me adversário da técnica, ou da tecnologia, ou de uma economia com mercado. O que eu condeno é a transplantação dos métodos e dos critérios economicistas para os domínios da vida humana; o que não aceito é que aos socialmente excluídos não lhes seja possível assumir o papel de verdadeiros sujeitos da História (e portanto da História do Desporto). Postula-se, por isso, um novo movimento da História, conduzido pelo reconhecimento dos excluídos como sujeitos. Eticamente, o Desporto deve sentir-se obrigado a optar, entre uma imagem falsa e a sua imagem verdadeira, que Thomas Arnold e Pierre de Coubertin anunciaram...

O que é então o progresso desportivo? O progresso desportivo resume-se ao acréscimo de humanidade, no maior número possível, de mulheres, homens jóvens e crianças, através dos meios que são específicos à prática do Desporto, numa sociedade onde a economia se encontre ao serviço do homem todo e de todos os homens. Importa, por isso, que por seu intermédio se alcance: 1. O reconhecimento de que a estagnação, na área do Desporto, resulta, em primeiro do mais, da marginalização cada vez maior, principalmente dos jovens, pelo atual sistema económico de mercado. 2. Que a economia de mercado (e não com mercado, repito-me) asfixia o que os jovens têm de melhor, de mais autêntico, mergulhando uns na miséria e outros na alienação do consumismo e na idolatria do dinheiro. 3. Que a Saúde e Aptidão não têm só causas desportivas, embora as desportivas mereçam também especial realce. 4. Que o Desporto tem de estudar-se, investigar-se, conhecer-se à luz do pensamento holístico, típico das ciências hermenêutico-humanas. Escreve o filósofo Manuel Reis (um autor que cultiva a filosofia, com a mais fecunda originalidade): “Insofismavelmente, a História do Ocidente não é a História do Mundo. Todavia, até por tudo quanto o Ocidente fez de negativo e de errado para que essas duas “coisas” fossem uma só, acumularam-se responsabilidades sérias, indeléveis do Ocidente perante todo o Planeta, de tal sorte que constituiria método errado e pecado de lesa-humanidade o Ocidente meter-se em copas e largar o resto do mundo à sua sorte (como se isso fosse mesmo possível. Daí que a missão que cabe hoje ao Ocidente seja, antes, a de proceder à sua necessária metanoia. E, para ajudar verdadeiramente o Próximo e a Humanidade inteira, é bom que ele se resolva a tirar coisas novas dos seus velhos alforges” (Cultura Ocidental e Humanismo Crítico, Centro de Estudos do Humanismo Crítico, 2015, pp. 121/2). Chegou a altura de pôr em causa, a todos os níveis, o desporto inteiramente submetido ao império da competição, da medida, do rendimento e do recorde, sem solidariedade política e social.

Urge perguntar se um desporto inteiramente comprometido com a libertação de todos os homens ainda é viável, tendo em conta o mercantilismo e a hipocrisia de tantos que o dirigem e comandam. Atingimos o ponto em que nos é exigido saber se, sim ou não, o progresso desportivo, apregoado pelas grandes centrais de manipulação da opinião pública, satisfaz as quatro aspirações de fundo, que habitam as pessoas: aspiração à dignidade de pessoa consciente e livre; aspiração à Paz e à Liberdade; aspiração à Solidariedade e à Justiça Social; aspiração a ver-se reconhecido e trataso, como responsável. É bom fixar: Dignidade, Paz, Justiça e Responsabilidade. Também a biologismo da educação física e do treino desportivo, ou seja, a convicção de que, para compreender o Desporto basta um conhecimento rigoroso do organismo humano e das leis bioquímicas por que se rege, provém desse originalíssimo processo, típico da economia de mercado, de redução da qualidade à quantidade, de confundir a práxis exclusivamente com a técnica. O perigo não está, como é óbvio, na utilização das conquistas da Biologia ou da Tecnologia, mas em pôr de lado uma filosofia que nos leva a perguntar pelo sentido e significação da prática desportiva; que nos remete para o conhecimento de que o Desporto é uma criação do Homem pelo Homem. Que é então o progresso desportivo? É progresso humano. E pode não haver progresso humano, só com muitos recordes batidos e muitos golos marcados.
 
Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto.

IN "A BOLA"
14/04/15


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