06/04/2015

JOEL NETO

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Caterpillar

Um dia destes encontrei o Luís. Emigrou para a América, adolescente ainda, e só voltou quatro ou cinco vezes. Desencontrámo-nos sempre. Tem dois filhos lindos e fala um português da Califórnia, cheio de goshes e sun-of-a--guns, no estrito cumprimento dos Dez Mandamentos. Perguntou-me o que faço e mostrou-me uma foto sua, orgulhosamente aos comandos de uma retroescavadora, a demolir um bairro social no Vale do São Joaquim.

Voltei 35 anos no tempo. Tal como os miúdos do resto do mundo queriam ser astronautas e polícias, nós queríamos ser pedreiros, serventes ou, nos casos de maior ambição, condutores de caterpillar. Tinham--nos caído as casas em cima - e os nossos heróis eram esses homens venturosos que diziam asneiras, bebiam Cinzano e brandiam talochas.

Roubávamos-lhes betão fresco e púnhamo-nos a construir garagens para os carrinhos. Uma ilha transformada num estaleiro é o cenário ideal para o exercício da imaginação. Ao fim de algum tempo, insistimos tanto que pudemos ajudar a encher as placas. Acabámos por aprender a traçar massa, a rebocar paredes e a assentar blocos. As noções que guardo já me safaram várias vezes.

Foi bonita, a reconstrução da Terceira após o terramoto de 1980. O governo abriu uma linha de crédito e cada um tratou do seu problema. Houve excessos, aberrações, falcatruas. Mas as pessoas partilharam materiais e força de trabalho e, em cinco anos, estava quase tudo reerguido. Já então Angra tinha sido classificada pela UNESCO.

Não tenho a certeza de que ainda exista esse tipo de açoriano. Não tenho a certeza de que ainda exista esse tipo de português. Mas, desde que encontrei o Luís, que queria ser condutor de caterpillar e cumpriu o seu sonho, tenho menos medo de que a terra volte a tremer.


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
03/04/15


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