01/04/2015

ANA CRISTINA PEREIRA

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Até a língua desaparecer

Às vezes sinto-me perdida entre as tantas formas de exclusão com que me deparo

Descobri-te numa daquelas idas à casa do Filipe Vieira de Freitas, que tinha mais livros do que os meus outros amigos todos juntos. Quis logo saber tudo sobre ti, mas tu não deixaste. Não permitias que te fotografassem, não davas entrevistas, nem aceitavas prémios. Eu imaginava-te sentado num prado, com vacas em volta, a dizer: “Por quem me tomam? O que eu quero é o amor.”

“Passos em volta”. Frequentava a Escola Secundária de Francisco Franco quando o li pela primeira vez. Nunca lera algo tão fora deste mundo e tão dentro dele. Que deambulação a tua em busca de ti próprio! Não sei quantas vezes o terei lido. Ainda hoje o mantenho à mão, perto da minha cama. Não hesitarei um segundo se um dia alguém me perguntar qual é o livro da minha vida.

Às vezes, sinto-me perdida entre as tantas formas de exclusão com que me deparo. Às vezes, sinto-me perdida e começo a citar o primeiro capítulo desse teu livro: “Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro… Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida… compreende?… a nossa vida, a vida inteira, está ali como… como um acontecimento excessivo… Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo.”

No dia em que o teu corpo morreu, o Luís Miguel Queirós escreveu no Público que não tinhas vindo para nos entreter, que tinhas vindo para viver aquilo a que um dia chamaste a tua vida verdadeira. 

Ele, que sabe mais de poesia do que os meus outros amigos todos juntos, descobriu o teu “maior e mais estranho dom”: “convencer-nos (ainda que injustamente) de que escrevias directamente em poesia, como se a poesia fosse a tua língua materna, e todos os outros poetas se limitassem a traduções mais ou menos conseguidas de um idioma perdido de que só tu detinhas a chave.”

Não tenho peregrinações a fazer, não te preocupes. Por curiosidade, um dia fui à Rua da Carreira, no Funchal, olhar para o muro do nº 284, o que tapa a casa onde, por acaso, nasceste a 23 de Novembro de 1930. Confesso-te que vivi momentos chave da minha adolescência na Rua do Quebra Costa, nº 33, onde sei que tu passaste parte da tua infância. 

E que, há uns anos, ainda tive a tentação de fazer de amigos que te conheciam fechaduras para a tua existência. Deixei-me disso. 

Tu fizeste tudo para não ser um mediador entre nós, os teus leitores, e a tua obra. E eu tenho de te agradecer também por isso. Elevaste para um grau inimaginável a fusão que pode haver entre nós, os teus leitores, e a tua obra. E, agora que o teu corpo morreu, tu és a tua obra. E os grandes poemas como tu, Herberto Helder, “só desaparecem nas grandes línguas que desaparecem”.

Jornalista do "PÚBLICO"

 IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
29/03/15



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