02/04/2015

ALBERTO GONÇALVES

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O que eles inventam

À medida que cai o segredo de justiça, começa a tornar-se pública a injustiça que fizeram a José Sócrates. Há dias, alguns media sem princípios divulgaram, excitadíssimos, pedaços das "escutas" telefónicas ao ex-primeiro-ministro. O objectivo, presume-se, era o de confirmar a culpa deste nas trapalhadas de que é suspeito. No máximo, sugeriram involuntariamente a respectiva inocência. Passemos aos factos.

As conversas em causa incluem o que se presume ser uma série de nomes de código para a palavra "dinheiro", o dinheiro de José Sócrates que José Sócrates requisitava com regularidade ao amigo de infância Carlos Santos Silva, alegadamente a ama-seca das verbas. Dado que a má vontade impera, ninguém no Ministério Público colocou a possibilidade de o código não existir e os termos utilizados serem referências literais.

Quando por exemplo José pede a Carlos para "trazer um bocadinho daquela coisa que gosto muito" há que admitir que, à altura, Carlos se encontrasse em Tentúgal e a encomenda em questão se limitar a meia dúzia de pastéis. Ou, para não sairmos da região Centro, Carlos andaria pela Bairrada e tudo se resumiria a duas sandes de leitão. Se também me escutar os telefonemas, o MP sabe as vezes que isso já me aconteceu.

Quando José pede a Carlos os "livros do Duda", é para mim claro tratar-se de uma alusão às obras do prestigiado ensaísta Eduardo Lourenço, outro amigo do antigo governante, visita pontual do presídio de Évora e um académico conhecido por procurar em vão a identidade nacional e terminar cada frase com a pergunta "Não é?" Só por sorte nunca liguei a solicitar nada de semelhante. 

E quanto às "fotocópias", "documentos" e "dossiers" que José encarrega Carlos de providenciar, é obrigatório deduzir que constituem petit noms para o vil metal? É assim tão estranho que um político de carreira e um erudito da Sorbonne se rodeie em permanência de papelada solene e sortida? Alguém acredita nisto?

Não. Nem sequer as forças que se encontram por detrás de uma óbvia conspiração para silenciar um homem incómodo - em inúmeros sentidos. Mesmo o "guito" interceptado numa conversa de Carlos é capaz de ter sido usado como diminutivo de "gás" (ver dicionário), numa situação em que o amigo de infância se deparasse com o tanque do carro vazio.

Aos poucos, percebe-se que o MP não possui quaisquer indícios que incriminem José Sócrates e recorre a puros delírios. E o desespero evidencia-se no momento em que, após a desastrada história da linguagem cifrada, se lançou para aí a tese de que José Sócrates não escreveu A Confiança no Mundo, cabendo a tarefa a um professor indistinto. Mais um tiro no pé. Ao acusar José Sócrates, o MP apenas lhe confere maior grandeza: sempre duvidei de que um indivíduo daquele gabarito intelectual assinasse tamanha porcaria. Não duvido é de que, do alto da sua inabalável ética, ele mandasse comprar quase todos os exemplares para poupar os leitores à ironia de acabarem torturados enquanto liam um texto sobre tortura. Citando um recente hino de homenagem: obrigado, José Sócrates - podem dizer, podem falar, podem inventar que ele não vai mudar.

Terça-feira, 24 de Março
Extremismos
Não importa que as diferenças que as separam (a imigração, só e só até certo ponto) sejam muito menos do que as semelhanças (a aversão ao capitalismo, à liberdade, aos EUA, a Israel e no fundo ao Ocidente em geral): ao contrário das vitórias ou meias-vitórias da extrema-esquerda, que prometem sempre regenerar a Europa, as vitórias ou meias-vitórias da extrema-direita ameaçam sempre destruir a Europa.

Porém, este nem sequer é o maior mistério com que se deparam os infelizes que seguem a actualidade pelos "telejornais". Enigma a sério é o facto de os eleitores inquiridos nas televisões jamais terem votado no partido "racista" e "xenófobo" que acaba de conseguir vinte ou trinta por cento nas urnas. Veja-se por exemplo o recente caso francês, no qual cada transeunte surgido nos noticiários se mostra preocupadíssimo com a ascensão da Frente Nacional, aliás iminente para aí desde 2002. Onde estão os cidadãos que possibilitaram a dita ascensão? À semelhança do Yeti, nunca ninguém os viu, ou se os viu é incapaz de provar a respectiva existência.

Das duas, uma: ou os simpatizantes da FN habitam em catacumbas, saindo à luz do dia exclusivamente para depositar o voto, ou todos os actos eleitorais favoráveis à extrema-direita são uma gigantesca fraude, que por insondáveis motivos as autoridades deixam passar impune. Também há a hipótese de boa parte do jornalismo andar de rastos, mas isso já me parece demasiado rebuscado.

Sábado, 28 de Março
A porta dos fundos
É fundamental que os desastres aéreos sejam investigados com minúcia. Mas nem assim se justifica a enxurrada de palpites posteriores à queda do A320 nos Alpes. E, por uma vez, o frenesim das nossas televisões foi um sossego quando comparado com a rédea solta da CNN, por exemplo, em que no meio de dias de emissão ininterrupta espreitei duas longas reportagens sobre a porta (a porta!) do cockpit dos Airbus. Para cúmulo, depois dos especialistas em aviação, vieram hordas de psicólogos explicar porque é que as pessoas, pilotos incluídos, sofrem de depressão e de instintos suicidas. Conheço pelo menos um motivo.


IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
29/03/15

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