31/03/2015

FILIPE LUÍS

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Anatomia de uma falha

O trunfo de Passos talvez seja o de ser um homem como nós. Mas falta-lhe um momento de redenção...

Num livro fantástico, o escritor Javier Cercas traça um retrato histórico do período de transição para a democracia, em Espanha. Anatomia de um Instante parte do momento em que o tenente-coronel  franquista António Tejero entra pelo Congresso dos Deputados, aos tiros, no auge de uma tentativa de golpe e três homens recusam obedecer à ordem de se atirarem para o chão. De caminho, Cercas revela que em lugar de escrever o romance histórico inicialmente previsto, optou, a meio caminho, por investigar os acontecimentos e produzir uma novela não ficcional. "Porque a realidade era muito melhor do que a ficção." No seu fresco sobre a História de Espanha desde a guerra civil, o escritor labora em torno de personagens fundamentais, num magistral registo de ?emotividade não comprometida, mostrando-?-nos uma galeria de anti-heróis em que não esconde fraquezas, defeitos, imperfeições. Entre eles, o Rei, Juan Carlos, e o presidente do Governo de transição, Adolfo Suárez. 

Este, bem como o secretário-geral do PCE, Santiago Carrillo, e o oficial do Exército Manuel Gutiérrez Mellado, vice de Suárez e seu ministro da Defesa, foram os únicos que desafiaram o pronunciamento de Tejero, nesse distante 23 de fevereiro de 1981 (o 23-F...), mantendo-?-se de pé, quando todos os deputados e membros do Governo, ao primeiro tiro, se precipitaram para debaixo das respetivas bancadas. Desse instante mágico nasce uma lenda - e nasce a obra de Javier Cercas, cuja simpatia pessoal e política por Adolfo Suárez se revela, ao longo do livro, absolutamente ausente. Suárez é-nos apresentado como um arrivista, com sentido de oportunidade, que tratava, em primeiro lugar, da sua vidinha. Mas a conclusão do livro deixa-nos estarrecidos: incondicionais apoiantes do antigo primeiro-ministro, os pais do autor dão-lhe a chave da importância de Suárez, da sua popularidade prolongada, do seu papel fundamental e da sua transcendência no instante cuja anatomia dá origem ao livro. "Javier, mas não compreendes? Ele era como nós!" Como nós! Um espanhol comum, que num dado momento se torna tão decisivo como o próprio povo. Um plebeu cheio de defeitos, que se destaca numa monarquia onde a nobreza é avaliada pela cor do sangue. 

Oiçamos, 40 anos depois, Pedro Passos Coelho: "Não sou um cidadão perfeito!" Com esta frase desarmante, o primeiro-ministro português justifica a sua falha no pagamento da Segurança Social. Como "nós", arrastou o seu curso, trabalhou o menos possível, fez noitadas de álcool e mulheres, pediu um subsídio que talvez não lhe fosse devido, apresentou faturas de representação para ganhar dinheiro livre de impostos; como nós talvez sofra de iliteracia no momento de preencher impressos das Finanças e nem sequer terá sido, como nós, o melhor dos maridos, pelo menos, no seu primeiro casamento. 
Como nós, vive nos subúrbios e passa férias numa praia popular, rodeado de povo, à sombra de chapéus de sol. A sua força política pode vir daí. De ser um homem como nós. Cheio de defeitos, de imperfeições e de passado.
Mas falta-lhe a magia de Adolfo Suárez. O instante da redenção, o clique que o torne imprescindível. Podia ter sido agora. Se tivesse assumido a falha numa única declaração desassombrada, e se tivesse resistido à tentação de apontar o dedo a alguém que, na mó de baixo de um cárcere, é tido como pior do que ele. Foi pena.

IN "VISÃO"
14/03/15

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