12/03/2015

CATARINA CARVALHO

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Um piropo ou um galanteio,
eis a questão

Piropar ou não piropar, eis a questão. As opiniões divi­dem-se. A minha também. Não, o assunto não é tão taxativo como pretendem os defensores cegos da sua criminalização. E não, tam­bém não é tão simples como fazem crer os que atiram a questão para o campo da mera idiotice.

Como explica nesta edição da Notícias Magazine Pedro Mar­ta Santos, na sua resenha histórica do piropo, trata-se de uma questão de poder. E de género. Ou seja, estão reunidos todos os in­gredientes para a polémica. O poder de um género sobre o outro está na origem das lutas pela emancipação feminina, ou, como se diz de forma mais moderna, pela igualdade. Foi a ordem natural das coisas que deu aos homens o direito de tomar a dianteira no jogo da sedução. De uma forma mais ou menos selvagem. E às mu­lheres coube o papel, vá lá… de corar. O inverso seria, no mínimo, indecoroso. Menina séria não tem ouvidos. Pode ter olhos, pode até olhar, e mesmo apreciar… mas sempre sem palavras. O silên­cio contra o piropo. E esse é um sinal claro de menorização.

Tudo isto que acabei de relatar é a ordem natural das coisas, como já disse. Mas foi para contrariar isso que se construiu a ci­vilização, para combater a ordem natural das coisas, também por vezes conhecida como barbárie. No jogo do piropo, não há que evitá-lo, há um não-sei-quê de selvagem. E faz parte do argumentário de quem defende a sua ilegalidade que a lei faça o trabalho que o mero civismo, educação e cultura não consegui­ram. Que, com o seu chicote – e não, não pensem nas versões boas de chicote que estão tão em voga – com o seu chicote legal, acabe por regular o que até agora permanecia indomável: ouvir um «Ó boa!» na rua.

Não é, nunca será bom, ouvir um «Ó boa!» na rua. E nunca, nunca será legítimo que alguém o diga, ou que outro alguém seja obrigado a ouvi-lo. De uma certa forma, um piropo é a antecâmara do assédio. Como o assédio é o primeiro passo para a violação. Todos os estágios têm em comum a não concordân­cia, o não consentimento. De quem ouve. De quem é mais frágil.

Então estamos conversados?  Ilegaliza-se o piropo e pronto. Bom, não tão rápido. Há, nesta questão, pormenores que mudam o jogo todo. Costuma dizer-se que o diabo está ne­les, neste caso acontece que o diabo está na ausência deles. Ou seja, um piropo brutamontes será sempre isso, uma ofensa. Já um piropo requintado poderá ascender à categoria de galanteio. E que mulher não gostaria de ouvir isto: «Quero fazer contigo o que a primavera faz às cerejeiras», como inventou Pablo Neru­da. Ou «Luz do meu fogo, fogo das minhas entranhas. Meu pe­cado, minha alma», como escreveu Vladimir Nabokov, em Loli­ta. Ou mesmo esta frase de Prince: «Um corpo como o teu devia estar na cadeia porque está no limite de ser obsceno.»

Fazendo minhas as palavras da Joana Amaral Dias na cró­nica que lhe pedimos sobre este tema polémico, ela que é contra a criminalização. «Frequentemente o piropo é pulha e abjeto, ofende e enxovalha. Noutras vezes é expressão do desejo. Quan­do um estranho lhe oferece flores isso pode ser impulso, a ex­pressão da atração, sem a qual a interação entre dois desconhe­cidos seria clandestina.» Ou seja, a questão é tão complexa que deve, por enquanto, continuar no âmbito pessoal, das relações e da intimidade dos pensamentos entre as pessoas. Não há nada que impeça uma mulher de reagir – ao contrário de noutras for­mas mais violentas de assédio. Tudo o resto é um exagero. E po­de causar tantos danos como um piropo. Dos maus.

IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
08/03/15


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