12/01/2015

MIGUEL GUEDES

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Um cartoon vale
 por mil palavras

Um bom cartoon raramente é desenhado a traço grosso. A coragem de quem reduz um momento ou um contexto a uma quadrícula de desenho representa, simultaneamente, um desafio largo de abrangência e um terrível esforço de síntese. De forma muito semelhante a quem procura contar estórias na formatação de uma canção, um cartoonista procura passar uma mensagem forte num curto espaço, com ou sem legenda, mas com um "punch-line" que demanda muito mais ao que está implícito do que ao que denota. Este é um dos segredos da síntese, resguardar para o pensamento e reflexão dos outros a imagem da vida que se mostra em desenho. É, no fundo, um apelo à coragem dos outros.

Em 1992, o cartoonista António desenhou de forma brilhante João Paulo II com um preservativo enfiado no nariz, quando o Papa criticou o uso do preservativo numa jornada pastoral em África. As reacções à publicação no jornal "Expresso" foram semelhantes a um furacão indignado, alimentado pela polémica de quem não admitia que a síntese se fizesse por uma metáfora. Uma espécie de Jihad católica portuguesa levantou-se em coro indignado, como Kruz Abecassis (na altura, presidente da Câmara de Lisboa) se havia indignado aquando da exibição de "Je vous salue, Marie", de Jean-Luc Godard, na Cinemateca num verão quente de 1985. É nestes momentos que a Igreja Católica faz os cálculos e conta com poucos devotos: o abaixo-assinado contra a caricatura de António, discutido no Parlamento, esperava cerca de um milhão de assinaturas mas esgotou o seu prazo de validade com 28 mil indignados contra o desaforo papal. Quando António volta a aproximar um preservativo de um sumo pontífice, em 2009, enfiando-o na cabeça do Papa Bento XVI já só recebeu duas cartas de indignação. Neste momento, até o Papa admitia o uso do preservativo para evitar a contaminação com o vírus da sida, nomeadamente em África. Mudam-se os tempos, mudam-se os cartoons. É também por isso que a arte é uma prova da realidade dos homens no tempo à espera de ser interpretada.

Não é um privilégio português ou do catolicismo, pelo contrário. Basta recordar, no passado recente, às reacções do Islão à publicação de duas representações de Maomé num jornal dinamarquês e posterior divulgação na Noruega. Os protestos no mundo muçulmano foram violentos e merecerem, eles mesmos, diversos cartoons. Talvez porque seja um retrato mais fiel da realidade, uma fotografia não convoca tamanha indignação. Qualquer representação é mais forte e mais disruptiva, menos anulável pelo antídoto do contrafactual. Numa representação, os factos estão à mão do pensamento e fazem um apelo à interpretação e ao juízo. Apesar de todos os prismas de aferição, a realidade ainda é o que é.

O presidente da Turquia, Recep Erdogan, não gosta de cartoons. Sobretudo os que o representam a ele mesmo e talvez porque não admita o confronto com a sua própria realidade. Com pressões editoriais fortíssimas sobre a Imprensa, com processos judiciais sucessivos contra a comunicação que os publica, o regime islamista de Erdogan faz tábua rasa da liberdade de Imprensa. As ameaças e as detenções arbitrárias de jornalistas da imprensa e televisão fazem do presidente um cartoon de si mesmo quando a principal acusação que sobre ele pende é a de tirania. Num momento em que a União Europeia vive as eleições gregas como a principal ameaça à democracia germânica e especulativa que vingou nos últimos anos, o exemplo da Turquia é paradigmático. Durão Barroso, em 2006 e enquanto presidente da Comissão Europeia, assegurava que o processo de adesão da Turquia à União Europeia iria alongar-se até 2021.

Compreende-se a dificuldade face à diversidade do contexto turco. Para uma Europa que é toda ela um cartoon, onde a liberdade de escolha grega já lançou a fera alemã na maior campanha de ingerência eleitoral de que há memória na democracia de um país europeu soberano, a realidade ainda é o que é. A tirania não fica bem na fotografia da Europa nem em nenhum cartoon turco. Mas nunca a realidade de ambos esteve tão próxima.

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
06/01/15

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